O conhecimento da História faz-nos muita falta e é por isso que, com grande razão, se diz que um povo sem memória é um povo sem futuro.
Ora, é esse mesmo conhecimento que nos mostra que, ao longo da História, ocorreram situações de grave crise económica, política e social, sobretudo em momentos de impasse, em que as classes mais dominadas e exploradas não viram ou não tinham uma alternativa revolucionária e as classes dominantes começaram a concluir que os responsáveis políticos que tinham colocado no poder já não estavam em condições de aplicar a política e de cumprir o papel que lhes fora atribuído.
E foi precisamente nessa altura que sempre surgiram, foram lançados, apoiados e levados ao mesmo poder personagens apresentados como autênticos “salvadores da pátria” e verdadeiros campeões da luta contra a corrupção, a imoralidade, o abuso e o desperdício.
Assim, a respectiva legitimação política é sempre construída na base de um discurso radical, aparentemente muito crítico, contra a corrupção e outros males do sistema político vigente, clamando continuamente contra as “vergonhas” do mesmo, defendendo uma pretensa (e nunca totalmente explicada) ruptura com o dito sistema, invocando uma (realmente inconsistente e até inexistente) defesa dos mais pobres e desfavorecidos da sociedade e a construção de uma pretensa “nova ordem” social e política.
O certo, porém, é que esta lógica discursiva, profundamente hipócrita e enganadora, se não for incansável e consequentemente combatida e desmascarada, é susceptível de enganar incautos e arrastar indignados, e até de obter o seu voto e o seu apoio, pela empatia que o referido discurso supostamente anti-corrupção, anti-sistema e de ruptura com a podridão, a vários níveis, do regime político, pode afinal suscitar.
E de cada vez que aqueles que se dizem democratas e defensores do povo mentem, fogem às suas responsabilidades, se envolvem em esquemas de corrupção ou, com as suas políticas, agravam cada vez mais a situação de quem é pobre, fraco e vulnerável, mais força vão dando aos ditos “salvadores”…
Foi sempre deste modo que personagens como Hitler, Mussolini, Franco, Salazar e mais recentemente Bolsonaro surgiram, se alcandoraram ao poder e, uma vez aí chegados, despiram prontamente as peles de cordeiro e mostraram a sua verdadeira natureza de empedernidos e sanguinários ditadores, levando assim, com frequência, mas só nessa altura, muitos daqueles que os haviam inicialmente apoiado a perceberem, demasiado tarde, o logro em que haviam caído.
O que são verdadeiramente Ventura e Chega
Ora, é precisamente por isso que devemos atentar – e denunciá-los, com base em factos e argumentos – no que verdadeiramente são, e ao que realmente vêm, André Ventura e a sua organização instrumental, o Chega. E muito em particular impõe-se verificar se e como muitas – para não dizer praticamente todas – as características daquelas experiências históricas se estão ou não, afinal, a verificar perante os nossos olhos.
Assim, e desde logo, importa constatar que a construção desse tipo de figura mítica do “salvador da pátria”, campeão da luta contra a corrupção e pela moralidade e bons costumes assenta, em larga escala, numa gigantesca propaganda. E a essência desta, tal como o sinistro ministro da propaganda nazi, Joseph Goebbels, escrevia, em 1942, no seu diário, assenta acima de tudo na simplicidade (para não dizer no simplismo) e na repetição (até à exaustão).
É precisamente por isso que, tal como faz Ventura, a repetição infindável dos “chavões”, tão falsos quanto gerais e abstractos, da “vergonha”, da “corrupção”, da “defesa dos que trabalham e pagam impostos” (para supostamente outros, como ciganos e imigrantes, viverem à sua custa) serve precisamente para construir o discurso legitimador do personagem. Discurso legitimador esse que é depois completado pela apresentação e defesa do líder como uma figura transcendental, não raro até de inspiração divina, que – porque tem sempre razão e as suas “verdades” se não discutem nem podem discutir – expressaria a suposta vontade colectiva de todo o povo, assumindo assim a nobre missão, atribuída por esse mesmo povo, senão mesmo por Deus[1], de salvar o país do “desastre” que a “esquerda” e o “marxismo” lhe trouxeram.
Por outro lado, aos membros da organização a que preside – e que lhe é útil tão somente enquanto estrutura logística e instrumental – cabe apenas aplicar a famigerada trilogia de Mussolini do “crer, obedecer e lutar!” E é depois assim que, em nome do princípio nazi de que os fins justificam os meios, a mentira, a calúnia, o insulto, o incitamento e a prática do ódio (racial, e não só) mais primário e a intimidação e o ataque, não só verbais como até físicos, se tornam cada vez mais habituais e até legitimadas armas de acção política.
E quando chegam ao poder – disso não tenhamos a menor dúvida – passam abertamente a defender e a praticar a tortura dos opositores políticos (apresentada, como fez Salazar, como “uns safanões a tempo nessas sinistras criaturas”) ou até o seu assassinato (em nome da “defesa da autoridade e da segurança do Estado”).
A captação dos desiludidos e os descontentes
Os grandes e obscuros interesses financeiros e políticos, que são verdadeiramente os donos deste país, reservaram, ao menos por agora, esse papel a André Ventura e ao Chega, e estão a ver até onde o conseguem levar, seguindo, como se vê, muitos dos passos dos seus antecessores históricos e fazendo o tipo de propaganda que julgam capaz de levar para o seu campo, sobretudo os descontentes, os desiludidos e os “descamisados”, a quem o campo da Liberdade, da Democracia não quis ou não foi capaz de apresentar uma verdadeira alternativa.
Por tudo isto, na campanha das eleições presidenciais agora em curso, André Ventura não avançou um único projecto ou ideia de fundo para o futuro do país e para aquilo que este exige do cargo a que se candidata, limitando-se a, nos debates em que sentiu que isso lhe seria permitido, reproduzir o estilo e, sobretudo, as inefáveis “técnicas” dos “debates” futebolísticos da CMTV: interromper sistematicamente os seus adversários, lançar-lhes repetidamente atoardas, acompanhadas da conhecida manobra de exibir factos e recortes de jornais ou outro tipo de adereços e, simultânea e significativamente, passar ao lado de todas as questões que lhe fossem colocadas e lhe não agradassem ou fossem incómodas.
E, por outro lado, como convém, repetir continuamente meia dúzia de chavões e de auto-elogios, os quais importaria denunciar e desmascarar até ao fim. Infelizmente – embora se compreenda a dificuldade de debater a sério ideias com um verdadeiro troglodita, ainda por cima quando a conduta deste é tolerada ou até, e a bem da busca das audiências baseadas na lógica do “sangue”, incentivada pelos jornalistas –, nenhum dos outros candidatos teve a frieza de ânimo, o tempo e a capacidade de pôr definitivamente a nu a completa falsidade daquele tipo de afirmações de Ventura.
Ventura posto a nu
1) “Exclusividade” da função de deputado: Ventura gosta de apresentar a coerência como um dos seus atributos. Mas – conforme já denunciei em texto anterior e aqui relembro, Ventura pregou a exclusividade da função de deputado para só ao fim de mais de 7 meses, e após inúmeras denúncias, ter finalmente largado os lugares e os vencimentos de comentador da CMTV e de consultor da Finpartner. Jurou em declarações prestadas na altura, a escassos dias das legislativas de 2019, que a sua função essencial era a de deputado e que, quando se candidatasse às eleições presidenciais, nunca suspenderia o mandato de deputado, para depois, e como todos vimos, vir apresentar e reclamar tal suspensão e martirizar-se por ela não lhe ter sido concedida.
2) Luta contra a corrupção: Ventura apresentou-se como um campeão da luta contra a corrupção, até por ter sido inspector da Autoridade Tributária e Aduaneira, mas, afinal, não só no exercício dessas funções foi autor de um parecer que permitiu isentar uma empresa de Paulo Lalanda de Castro do pagamento de 1,8 milhões de euros de IVA, como logo depois, não deixando em definitivo a função pública (pois terá saído com uma licença sem vencimento de longa duração), foi colocar os conhecimentos que tinha adquirido naquele serviço do Estado agora ao serviço do apoio da consultora privada da “Finpartner – Consultoria, Contabilidade e Fiscalidade, SA” a grandes empresas nas actividades ditas de “planeamento fiscal”, ou seja, de eximição ao pagamento de imposto através de mecanismos e subterfúgios legais.
3) Significativa ausência: Faltou ostensivamente no parlamento – sem dar logo qualquer justificação para tão significativa ausência – à votação de diplomas legais referentes ao combate ao branqueamento de capitais.[2]
4) (In)Coerência de voto: Quando se tratou de votar no mesmo Parlamento uma proposta (do BE) de alteração ao Orçamento de Estado de 2021, anulando a transferência de mais 476 milhões de euros do Fundo de Resolução para o “buraco negro” do Novo Banco, o “coerente” André Ventura, no mesmo dia, absteve-se, votou contra e depois votou a favor da mesmíssima proposta! Para “coerência”, não está, pois, mal…
5) “Condenação” da violência doméstica: Ventura já fez uma ou outra declaração, sempre de modo meramente formal, de condenação de violência doméstica, mas, no Parlamento, absteve-se na votação de uma proposta (do PCP) de lei[3] visando um reforço da medidas de protecção das vítimas de violência doméstica, para depois, e sem apresentar qualquer alteração ou nova proposta, invocar que se abstivera por a dita proposta ser “altamente insuficiente”… Também foi possível que, no Congresso do Chega, uma proposta (do militante Rui Roque) que defendia, entre outras barbaridades, que fossem “retirados os ovários às mulheres que interrompessem voluntariamente a gravidez”, fosse recebida na mesa, por esta aceite e até levada a votação, sendo então derrotada por simples maioria.
6) “Reforma” da Saúde e da Educação: Ventura e o Chega sustentam que o Estado não deve ser prestador de quaisquer bens ou serviços, quer na área da Saúde (ou seja, a extinção do Serviço Nacional de Saúde e a assunção, pelo Estado, do papel de mero regulador desse mercado), quer na da Educação (defendendo mesmo a extinção do Ministério da Educação e a entrega das escolas públicas a empresas privadas de educação).
7) Redução do número de deputados: Ventura e o seu Chega defendem – agora que já lá estão e ambicionam ter, ainda antes dessa “reforma”, uma representação parlamentar de vários deputados – a redução para 100 do número de deputados mo parlamento. O que, com o método de Hondt, significará, acima de tudo, a dificultação da possibilidade de eleição de deputados por partidos mais pequenos e a consequente eternização no poder dos partidos políticos que têm sido maioritários, muito em particular do chamado “Bloco Central” (PS/PSD) que Ventura tanto diz combater. Por vezes, as pessoas só vêem o que iriam poupar em custos com a redução de deputados, sem se aperceberem de que, com essa mesma redução, acabaremos como nos EUA, com dois partidos apenas.
8) ONU: Ventura, à boa maneira dos fascistas de todo o mundo, desta e das anteriores épocas, e tal como consta do capítulo “Política Externa” do programa do Chega, proclama “a necessidade da reavaliação de interesse efectivo da nossa presença na ONU”, sob o “argumento” de que esta “transformou-se numa produtora e defensora do marxismo cultural e do globalismo massificador que não estamos dispostos a consumir e, muito menos, a pagar para que os outros os consumam”.
E, numa nova e extraordinária manifestação de “coerência”, não só defende “a necessidade de imediata reversão da outorga do suicidário “Pacto para as Migrações” que a ONU pretende concretizar”, como a “eliminação da participação em agências e ONG’s que interferem na soberania nacional”. Mas, simultaneamente e por mero tacticismo, Ventura transformou-se num estrénue defensor da integração de Portugal na União Europeia e, mais do que isso, na Zona Euro, sem que tal integração lhe suscite o menor problema quanto à interferência na soberania de Portugal quando este, com tal integração, a perdeu por completo em matérias tão díspares como a orçamental, a monetária, a fiscal, a económica, a da Justiça e a da Política Externa. Para Ventura, pois, a integração na União Europeia e no Euro é boa, mas a pertença à ONU, à OMS ou OIT é que é má…
9) A “defesa” dos contribuintes: Ventura passa a vida a proclamar que quer ser “Presidente apenas dos portugueses que trabalham, que se integram e que pagam impostos”, e não da outra metade (dos subsídio-dependentes, à cabeça dos quais aponta os ciganos e os imigrantes) que viveriam à custa dos primeiros, recebendo o Rendimento Social de Inserção (RSI) e passeando pelas ruas e pelos cafés sem nada fazer.
Ora, esta atoarda xenófoba e racista, tendente a dividir os elementos do povo que ele diz defender e a atirá-los uns contra os outros, é total e revoltantemente falsa.
É que, de acordo com os próprios números da Pordata, o valor pago a título de RSI até Outubro de 2020 foi – e mesmo assim num ano de montantes mais elevados de prestações sociais devido à crise da pandemia – de 355 milhões de euros[4], abrangendo, em 2019, 135.428 famílias, das quais apenas 5.275 eram de etnia cigana, ou seja, 3,89%. O que significa que a totalidade do RSI que terá sido atribuída à totalidade das famílias ciganas não chegou sequer a 13,9 milhões de euros.
Isto, enquanto – como um dos outros candidatos disse, e bem, a Ventura – só o buraco deixado no BES pelas empresas (o grupo Promovalor) de um dos seus amigos dilectos, Luis Filipe Vieira, ascende a 225 milhões de euros. E tudo aquilo que escapou, entre 2011 e 2014 (sem controle da mesma Autoridade Tributária em que Ventura trabalhou), para as offshores(devido ao até hoje não esclarecido “apagão informático”), ascende a mais de 10 mil milhões de euros (98% dos quais referentes ao BES). E só o buraco do Novo Banco ultrapassa já os 7.876 milhões de euros pagos pelos mesmos contribuintes portugueses que Ventura diz querer proteger contra a máquina fiscal em que ele trabalhou.
A teoria do “salvador” Ventura de que o país está pobre e carece de meios financeiros necessários para suprir carências sociais, não por causa das falcatruas financeiras da banca e não só, mas por causa do RSI dos ciganos, constitui assim uma absoluta e provocatória falsidade.
11) As “verdades” sobre os imigrantes: A “conversa” de que os imigrantes viriam para Portugal para viverem à “nossa custa”, e designadamente da Segurança Social Portuguesa, é outra das completas mentiras de Ventura. Para não irmos mais longe, o último Relatório Estatístico Anual do Observatório das Migrações mostra, com toda a clareza, que a relação entre as contribuições dos estrangeiros para a Segurança Social e os gastos desta em prestações sociais de que aqueles beneficiam é bastante positiva e favorável às primeiras. Para além de que, de uma forma geral, os imigrantes que aqui vivem e trabalham tiveram sempre rácios de prestações sociais, pagas por contribuições por eles entregues, inferiores claramente aos dos cidadãos nacionais. Em 2019, esse saldo positivo (das contribuições relativamente às prestações sociais) dos imigrantes foi, “apenas”, de 884 milhões.
Haveria e haverá, ainda muitas mais falsidades e incoerências a denunciar, mas só estas já revelam a pele de cordeiro e a alma de lobo.
Pele de cordeiro e alma de lobo
Eis, pois, como absolutas falsidades, repetidas à exaustão até parecerem verdadeiras e “explicarem” as dificuldades dos trabalhadores portugueses, constituem, afinal, a essência da propaganda do “salvador” Ventura, que apenas está à espera de poder chegar ao poder (assim lhe dêem apoio e votos), para logo despir a pele de cordeiro que, por vezes, e para conveniência eleitoral, ainda vai vestindo, e mostrar então a sua verdadeira face.
Como bem mostram as saudações nazis feitas no comício do Porto em 25 de janeiro de 2020, a manifestação à “Ku Klux Klan” feita de máscaras brancas e de tochas na mão à porta da SOS Racismo em 8 de Agosto de 2020 (e após uma pichagem da fachada do prédio feita no mês anterior, clamando “guerra aos inimigos da minha Terra”) e as ameaças brutais que logo são feitas perante quem deles discorda (inclusive nas próprias fileiras).
Entre os amigos de Ventura – que até vêm a Portugal apoiá-lo na campanha das Presidenciais – estão fascistas retintos como Marine Le Pen. A mesma que, proclamando que Ventura é “um grito que vem do coração e um sinal que vem do céu”, prega em França a proibição do ensino da língua portuguesa aos filhos dos emigrantes portugueses e cujo partido, o Reagrupamento Nacional, antes designado Frente Nacional, ataca continuamente esses emigrantes, fazendo pichagens como a de “morte aos portugueses!”.
Ou como Matteo Salvinni, líder do partido italiano de extrema direita Liga Norte e ex-Ministro do Interior, que, entre outras proezas, em Agosto de 2019, bloqueou o navio “Open Arms”, com cerca de 150 emigrantes salvos no mar e em condições de enorme dificuldade, depois de já antes ter ordenado a prisão da alemã Carola Rackete, comandante da embarcação “Sea-Watch 3”, por esta ter insistido em desembarcar 40 emigrantes em precárias condições de saúde.
Não esqueçamos também que, internamente, os seus apoios políticos e ideológicos vêm de ex-elementos do Partido Nacional Renovador (PNR), da Nova Ordem Social (NOS), de Mário Machado, do Escudo Identitário, do grupo assumidamente neo-nazi “Blood and Honour” e de outras organizações similares.
É caso para dizer: diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és!…
E por tudo isto convém recordar as conhecidas palavras de Norberto Bobbio (mesmo que se entenda, como eu, que elas não denunciam de forma consequente a verdadeira natureza de classe e os interesses económicos e políticos que os fascistas corporizam, mas que não deixam de ser profundamente acutilantes):
“O fascista fala o tempo todo em corrupção. Fez isso em Itália, em 1922, na Alemanha, em 1933 e no Brasil, em 1964. Ele acusa, insulta, agride, como se fosse puro e honesto. Mas o fascista é apenas um criminoso comum, um sociopata que faz carreira na política. No poder, essa direita não hesita em torturar, violar e roubar a sua carteira, a sua liberdade e os seus direitos. Mais do que a corrupção, o fascista pratica a maldade.”
Não, não passarão!
António Garcia Pereira
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