UM SOPRO NO CORAÇÃO
Miguel Seabra tem 38 anos, é Capricórnio, actor, encenador de teatro e um grande comunicador. Há oito anos foi surpreendido por um acidente vascular cerebral que o mergulhou num processo de descoberta interior e exterior. Passado esse tempo sente-se um privilegiado, porque teve uma «segunda oportunidade na vida», como diz.
Sentes-te um homem com duas vidas?
Não, sinto-me um homem com uma vida com duas etapas claramente diferentes e necessariamente complementares.
Que etapas foram essas?
Eu entendo que as grandes experiências, principalmente as trágicas, (entendendo tragédia como dissonância, desequilíbrio, corte com o harmonioso) são oportunidades privilegiadas de evolução, de crescimento. Quando tens, como eu tive, um acidente vascular cerebral (a.v.c.), é não só uma situação trágica admitida socialmente como tal –porque é um grande rompimento com a norma- como individualmente se é forçado a lidar com uma realidade nova. Em última análise, sinto-me humanamente um privilegiado.
Como é que tudo aconteceu? Onde estavas, o que fazias...?
O meu a.v.c. deu-se no dia 26 de Maio de 1995, estava no Teatro São Luiz [em Lisboa] a montar um espectáculo do Teatro Meridional, o Cloun Dei, que ia ser apresentado nessa noite no âmbito do Festival Atlântico. Foi ao fim da tarde, não sei precisar a hora exacta, mas foi entre as 5 e as 7. De repente senti-me mal, caí, levantei-me, recompus-me e, segundo me disseram, disse «acho que não me estou a sentir bem» e deitei-me no chão, não caí, ou seja, foi um desmaio de nível, caí como um senhor. (risos)
Depois estiveste em coma [dez dias].
Estive em coma. Este a.v.c. teve a sua origem numa malformação arteriovenosa. Trocando por miúdos, tinha uma má formação congénita, já nasci com uma deficiência numa bifurcação de duas veias, em que uma recebia excesso de sangue (que foi a que rebentou) e a outra tinha défice. Há dois tipos de acidentes vasculares cerebrais: os chamados isquémicos que são [por exemplo] a trombose (um trombo aloja-se numa veia, entope a passagem e corta o fluído do sangue) e há o acidente vascular hemorrágico, que foi o que eu tive, que são os mais graves porque há uma veia que rebenta e inunda o cérebro de sangue. Estatisticamente 80% das pessoas não sobrevivem ao a.v.c. hemorrágico, portanto, eu pertenço aos 20% que sobrevivem, não obstante terem-me diagnosticado 5% de possibilidades de viver.
«ao princípio só esboçava sons»
Quando recuperaste do coma: lembras-te da primeira ideia que tiveste?
Não.
E tiveste alguma noção de alguma coisa?
Durante mais ou menos seis meses, um ano, fiquei bastante afectado na memória imediata. A recuperação pós-coma foi progressiva a esse nível. Estive dois meses no Hospital de S. José onde fui operado e depois estive quatro meses no Hospital de Alcoitão. Fiquei também muito afectado na fala; só consegui falar com a fluência com que te falo agora após o terceiro ano. Rebentou-me uma veia no lado esquerdo que detém o centro da fala; ao princípio só esboçava sons.
A nível psicológico tiveste que te reapresentar a ti próprio?
O traumatismo é suficientemente grave para tu não teres uma noção real do que aconteceu contigo e do que é que te afectou e de como queres recuperar. Por exemplo, hoje, passados oito anos, tenho um movimento bastante reduzido do braço e da mão direita e no início pensava que era como um braço partido e passado dois meses estaria a tocar piano. A consciência é de facto reduzida.
Como foi acontecendo o relacionamento com o teu novo corpo?
Eu tenho uma consciência muito activa do meu corpo, noção em boa parte dada pelas fisioterapeutas que me trataram. Tenho uma grande noção do movimento e da divisão das partes: bascular a bacia, mexer só o ombro... Sempre fiz muito desporto desde pequeno. Até aos 20 anos pratiquei andebol de competição e joguei futebol toda a vida e aos 23, quando entrei para o Conservatório de Teatro, passei a trabalhar o corpo ainda mais pormenorizadamente. Passei a ter uma relação físico-emocional mais específica. E uma das grandes dificuldades que as fisioterapeutas têm em lidar com pessoas que sofreram este tipo de acidentes, é a quase ausência total de consciência física e corporal.
«Porque é que eu sobrevivi, sendo apontado como um caso que a priori não ia sobreviver de todo?»
Isso pode levar-te a pensar que é por essa razão que te incluis nos 20% que sobrevivem a estes acidentes?
Não. Porque é que eu sobrevivi, sendo apontado como um caso que a priori não ia sobreviver de todo? É uma coisa para a qual ainda não tenho uma resposta concreta e objectiva. Mas sei que me foi dada a oportunidade de continuar a vida e ainda bem, porque quero aproveitar para evoluir o meu nível de consciência.
Normalmente quando este tipo de acidentes acontece às pessoas, elas passam a ser mais crentes em algo transcendente. Isso aconteceu-te?
Não. Sempre tive uma relação com a espiritualidade muito óbvia; não questiono se há outras vidas ou se tudo acaba aqui. Para mim é tão normal, como estarmos em frente um ao outro, que este patamar de evolução é apenas um patamar...
Mas sempre foi assim que pensaste, ou passou a ser assim?
Sempre tive tendência para ter este tipo de pensamento e, hoje em dia, com diversas experiências que já tive na vida, é um dado com que lido naturalmente.
Mas tornaste-te mais esotérico depois de toda esta tua história?
Tento estar mais desperto para a vida, para os pequenos pormenores. Procuro estar mais em sintonia com o pulsar do universo.
Isso é forte. É grandioso!
Sem pretensões, cada vez mais reduzindo-me ao meu tamanho.
Já te ouvi dizer que nos primeiros tempos quiseste recuperar a tua vida. Como se lida com essa vontade na relação com os outros?
Isso é tudo um grande mundo.
Mas há uma nova atitude.
Há.
Essa atitude é de tranquilidade ou ainda de expectativa, de ansiedade?
Tenho a consciência de uma evolução. Há coisas que eu via de uma maneira e agora olho de outra; e invisto nesse estado de alerta.
Porque te parece mais enriquecedor?
É quase uma obrigação, foi-me dada uma segunda oportunidade. Penso que quando és provocado perante uma situação limite como eu fui, ou sim ou sopas! Fui encostado à parede –ou empurras a espada ou deixas-te espetar.
Como eras há oito anos atrás?
Tinha mais cabelo. (risos)
Eras convencido, davas-te com os outros, para que é que servia o teatro... quais eram os teus objectivos?
Tantas perguntas diversas numa só.
Para tentar perceber se a tua personalidade se transformou de facto, ou se consideras que te encaixaste melhor naquilo que de facto és. Eventualmente, se não tivesses sofrido o acidente nunca tinhas tido a possibilidade de te conhecer como agora te conheces.
Respondeste a essa pergunta. (risos)
Outra coisa que me parece curiosa é o facto de quereres publicar um diário que escreveste durante três anos. Tu queres ser lido: por ti, pela sociedade em que vives, pelos direitos que te parece que tens de ganhar...?
Também não te sei responder linearmente. Mas uma coisa sei: é mais uma vez uma oportunidade de passar uma experiência que registei, com a grande particularidade de falar da intimidade de alguém que viveu um processo complicado e como essa pessoa vive o mundo à sua volta e o mundo interior, e estabelece uma ponte. Acho que socialmente é um material interessante.
Não te assusta toda a exposição que o livro possa gerar? Não te parece que vais ser catalogado?
Claro! Ainda por cima hoje em dia, em que se aproveita tudo para fazer capa de qualquer coisa! E neste mundo descartável, hoje estás aqui e amanhã já não se sabe quem tu és.
E isso não é um factor negativo?
Principalmente é o que é. Não é um romance, é em formato de um diário pessoal e íntimo, ou seja, vou ficar muito exposto e tenho consciência que de uma maneira muito particular, porque sei que estes diários não se fazem.
Ou se se fazem, guardam-se na gaveta.
O Cardoso Pires escreveu um que teve muito sucesso, mas foi romanceado e é um texto de um escritor fabuloso. Eu não sou escritor, não sou fabuloso... também não é isso que está em causa. Portanto, tenho a certeza de que se for minimamente divulgado vai dar minimamente nas vistas pela originalidade e pela exposição da alma.
«comecei a a perceber que pondo cá para fora o que me andava na cabeça ficava mais saudável»
Mas a alma é um sítio muito recatado...
É um diário em que escrevo o que sinto. Comecei a escrever para praticar a mão esquerda, depois entusiasmei-me com o que escrevia, comecei a perceber que pondo cá para fora o que me andava na cabeça ficava mais saudável. Então apercebi-me de que o material era interessante e a sentir que, se calhar, era também a minha função partilhar, porque revelo muitas coisas que se passam em hospitais, em centros de recuperação. Sou Capricórnio e, portanto, tenho um sentido de responsabilidade social muito dentro da minha consciência; se calhar é essencialmente por isso que me motiva publicar.
Em relação ao teatro: o que se modificou na tua postura profissional?
Voltei a fazer teatro em 1998, para a Expo, um espectáculo que já tinha feito mais de cem vezes e por isso estava muito dentro de mim. Chamava-se Ñaque ou sobre piolhos e actores.
Vestires de novo a pele dessa personagem deu-te a sensação de estares de volta?
Cada vez tenho mais presente que o eu que estava no CEM há uma hora já cá não está.
«Tem sido um conflito bom. Às vezes cansativo. Mas não me canso.»
Mas tinhas essa ansiedade de voltares a ser quem tu eras.
Sim, mas... é um conflito. A vontade de voltar a ser o que era tem a ver com o sentido de identidade: se voltar a ser quem era volto a ser quem sou, o Miguel. Isto tem sido um conflito ao longo destes oito anos: se eu já não sou quem era, como é que posso querer ser quem era? Ao mesmo tempo, tenho esta consciência e esta lucidez de que há um lado que me puxa a ser quem era para me devolver a identidade e poder recomeçar; e há o outro que me diz «aceita, aguenta-te à bronca, descobre quem és com o que eras, com o que já não és, com o que acrescentaste». Tem sido um conflito bom. Às vezes cansativo. Mas não me canso. Acho que, de certa forma, há um lado que aproveitou muito bem estes oito anos, que é o de alguma sabedoria das entrelinhas da vida, pequenas nuances de que não se fala, percepção de comportamentos... Não que eu me considere sábio. Mas, se alguma sabedoria tenho, com o a.v.c. ficou enriquecida.
E em termos de um espectáculo de teatro?
Tem a ver com o que eu entendo de teatro: é uma arte da comunicação e entre seres humanos –viva, activa, directa, energética, em que há um grupo de pessoas receptoras e um outro de emissores. Gosto de trabalhar no espaço in between, entre cada um desses grupos: como se dá, como se recebe, como se dá sem se ficar vazio...?
Como é que se dá sem se ficar vazio, em cima de um palco?
É dando com o coração. (risos) Tem a ver com muitas coisas que penso: a vida devolve-te o que tu dás à vida; e se dás à vida ser-te-á devolvido de diversas formas. Por isso é que eu precisava de viver esta situação. E é esta consciência que me dá também a noção de que sou um privilegiado. É uma situação tradicionalmente conotada como negativa, mas é gratificante.
No teu caso, foi um processo solitário?
É sempre solitário. Porque só acontece a mim.
E, indirectamente, também às pessoas que estão à tua volta.
Muito. Mas nem nada que se pareça. Vivi todo o processo do a.v.c. diariamente com a Natália Luiza e aconteceu-lhe quase tanto a ela como a mim. Mas, não obstante, mantenho o paradoxo: é quase o mesmo mas não é nada que se compare.
«Acho espantoso pôr-me em causa porque me confronto com uma pessoa que pensa diferente de mim»
Quais são os próximos projectos do Teatro Meridional?
Embora eu seja o director do Teatro Meridional, divido a direcção artística com a Natália Luiza, ou seja, pensamos e concebemos os projectos os dois. A Natália tem uma vontade, não necessariamente ligada mas em ponte com o Teatro Meridional, de criar uma casa da língua portuguesa, um espaço intercultural lusófono, ligado ao teatro, à literatura, à poesia. Pessoalmente, gostava que o Teatro Meridional continuasse a envolver o público através da interpretação do actor, centrando-se cada vez mais nos actores – e levá-los a terem uma consciência activa da relação energética palco-plateia e cada vez dependerem menos de mim como encenador. A interculturalidade é também uma área que quero continuar, na sequência do projecto original do Meridional. É muito mais enriquecedor se eu tiver um chinês comigo que pensa para a direita e eu para esquerda. Acho espantoso pôr-me em causa porque me confronto com uma pessoa que pensa diferente de mim. Com o esbater das fronteiras e com a globalização, suponho que o nível de consciência individual é que passará a diferenciar as pessoas. Elas vão começar cada vez mais a reconhecer-se por níveis de elevação de consciência.
Isso nos próximos cinquenta anos ou duzentos?
Não sei. Mas é uma etapa que já partiu. A revolução cultural e de consciência já se iniciou, as máscaras já começaram a cair –é só ver os casos de pedofilia na sociedade portuguesa. Sabes, o tempo não existe. É só uma invenção dos suíços e dos japoneses para ganharem dinheiro. (risos)
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