No mesmo dia em que o mundo esperava pelo resultado das eleições americanas, uma outra votação acontecia na Califórnia: o referendo sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo. A vitória da igualdade parecia garantida. Mas aconteceu um imprevisto: os negros registaram-se em massa para eleger Barack Obama. E votaram maciçamente contra o casamento. Isto chegou para o outro lado vencer.
O episódio tem a vantagem de deixar algumas coisas claras. O oprimido é também opressor e a minoria é muitas vezes maioria, nos outros domínios da sua vida. Assim como muitos homossexuais são racistas, muitas mulheres são homofóbicas, muitos imigrantes são machistas. As minorias não são melhores do que as maiorias. Apenas as circunstâncias fazem delas vítimas da intolerância. Tomar o partido de uma minoria, não é tomar o partido dela, é tomar o partido da igualdade.
Por isso, os direitos das minorias nunca seguem percursos paralelos. O mundo não caminha, não caminhou na última década, rumo à tolerância e à igualdade. Vivemos em constante conflito: os cristãos odeiam os judeus que perseguem os muçulmanos que matam homossexuais, que desprezam os muçulmanos, que humilham as mulheres. São as circunstâncias que determinam o carrasco e a vítima. Não é nada de essencial em cada minoria.
Porque desafiam as identidades de género, a mais primitiva das identidades, os homossexuais são discriminados em todas as culturas. Mas, apesar da sua situação excepcional, a conquista dos seus direitos civis é apenas uma questão de tempo.
Os homossexuais acederam, ao longo desta década, ao casamento civil, em muitos países. Na realidade, os heterossexuais também ficaram a ganhar com esta “laicização” definitiva do casamento, já que este deixa de equivaler a um carimbo de moralidade conservadora. E esta é a razão por que a igualdade dos homossexuais é inevitável: ela corresponde a um movimento maioritário de reinvenção da família e das instituições a ela associadas. A crescente autonomia das mulheres levou à desagregação da família patriarcal e isso baralhou os papéis de homens e mulheres, abrindo um espaço enorme de liberdade.
Temos também de ter em conta que a discriminação dos homossexuais não tem uma base económica – apesar de o estereótipo do gay rico que manobra o poder ser um absurdo que nem debate merece. Hoje, no Ocidente, os constrangimentos a vencer para esta igualdade são, apesar de tudo, menos estruturais. E isto explica porque é que, sendo a homofobia mais generalizada do que as outras formas de intolerância, os homossexuais conquistaram, nesta década, tantos direitos: casamento civil em vários Estados americanos e muitos países europeus, possibilidade de adopção, leis antidiscriminação. Mas vale a pena não esquecer que, no resto do mundo, onde a estrutura familiar se manteve quase inalterada, a homossexualidade ainda é crime grave.
Tudo o que se aplica em relação aos homossexuais é extensível às mulheres, essa maioria subordinada durante séculos. As quotas no Parlamento e o referendo para a despenalização do aborto foram dois momentos cruciais em Portugal. No segundo caso, o resultado decretou o fim da tutela da Igreja sobre a nossa sociedade. Não é pouco. É mesmo o acontecimento nacional mais importante desta década.
Se o reforço dos direitos das mulheres e dos homossexuais é uma evidência da última década, é impensável dizer o mesmo em relação às minorias étnicas e religiosas. A eleição do primeiro Presidente negro nos Estados Unidos – ou do primeiro índio na Bolívia – podem ter acalentado muitas esperanças, mas nem podemos falar de uma América do Norte pós-racial nem de uma América do Sul igualitária. No primeiro caso, um negro conseguiu fazer esquecer que era negro; no segundo, uma maioria oprimida revoltou-se. Mas o conflito está lá.
Vale mais olhar para a Europa para perceber para onde estamos a ir. Desde o 11 de Setembro que a intolerância religiosa e para com os imigrantes se reforçou. O símbolo mais evidente deste processo aconteceu no fim da década, com a proibição da construção de minaretes na Suíça. Mas ela teve, nos últimos dez anos, muitos episódios. As mudanças, para pior, das leis de imigração. O crescimento da extrema-direita. A procura oficial de uma identidade francesa unificadora e exclusiva. A proibição de símbolos religiosos, no espaço público. As polémicas permanentes envolvendo o Islão – da proibição do lenço nas escolas públicas, em França, aos cartoons dinamarqueses. E do “lado de lá” acontece o mesmo: crescimento do fundamentalismo religioso e vitimização como forma de resistência identitária.
O debate na Europa fez-se, até agora, entre o multiculturalismo – uma versão tolerante da lógica identitária, por reservar para cada um o papel que se espera, impedindo a contaminação – e a xenofobia. À margem da contenda ficou o cosmopolitismo. A ideia de que o que se traz da cultura de origem deve sobreviver confrontando-se de forma criativa com os outros. Multiculturalistas e xenófobos preferem o apartheid cultural, o mito da integração ou o puro isolamento. E não é provável que as coisas mudem tão cedo. Porque a subalternização dos imigrantes tem uma base económica incontornável. Em tempo de vacas gordas, são mão-de-obra barata. Em tempo de vacas magras, são mais bocas para alimentar e mais conflitos para gerir.
Se esta década forçou a autonomia dos indivíduos, ela fez, por via da guerra e da crise, recuar os povos para as suas fronteiras. Se entre os cidadãos europeus e brancos se tendeu para a indefinição, a reacção à globalização reforçou identidades e reduziu o espaço para afirmação individual fora das personagens “imigrante”, “muçulmano”, “ocidental”. A década foi contraditória. Porque os direitos das minorias têm apenas em comum serem direitos. As minorias e as razões da sua discriminação nada têm de semelhantes. Como o voto dos negros da Califórnia tão bem provou.
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