30 janeiro 2010

o haiti não é aqui

Os pecados do Haiti
por Eduardo Galeano

A democracia haitiana nasceu há um instante. No seu breve tempo de vida,
esta criatura faminta e doentia não recebeu senão bofetadas. Era uma
recém-nascida, nos dias de festa de 1991, quando foi assassinada pela
quartelada do general Raoul Cedras. Três anos mais tarde, ressuscitou.
Depois de haver posto e deposto tantos ditadores militares, os Estados
Unidos retiraram e puseram o presidente Jean-Bertrand Aristide, que havia
sido o primeiro governante eleito por voto popular em toda a história do
Haiti e que tivera a louca ideia de querer um país menos injusto.

O voto e o veto

Para apagar as pegadas da participação estado-unidense na ditadura sangrenta
do general Cedras, os fuzileiros navais levaram 160 mil
páginas dos arquivos secretos. Aristide regressou acorrentado. Deram-lhe
permissão para recuperar o governo, mas proibiram-lhe o
poder. O seu sucessor, René Préval, obteve quase 90 por cento dos votos, mas
mais poder do que Préval tem qualquer chefete de quarta categoria do Fundo
Monetário ou do Banco Mundial, ainda que o povo haitiano não o tenha eleito
nem sequer com um voto.

Mais do que o voto, pode o veto. Veto às reformas: cada vez que Préval, ou
algum dos seus ministros, pede créditos internacionais para dar pão aos
famintos, letras aos analfabetos ou terra aos camponeses, não recebe
resposta, ou respondem ordenando-lhe:
ˆ Recite a lição.
E como o governo haitiano não acaba de aprender que é preciso desmantelar os
poucos serviços públicos que restam, últimos pobres amparos para um dos
povos mais desamparados do mundo, os professores dão o exame por perdido.

O álibi demográfico

Em fins do ano passado, quatro deputados alemães visitaram o Haiti. Mal
chegaram, a miséria do povo feriu-lhes os olhos. Então o
embaixador da Alemanha explicou-lhe, em Port-au-Prince, qual é o problema:
ˆ Este é um país superpovoado, disse ele. A mulher haitiana sempre quer e o
homem haitiano sempre pode.
E riu. Os deputados calaram-se. Nessa noite, um deles, Winfried Wolf,
consultou os números. E comprovou que o Haiti é, com El Salvador, o país
mais sobrepovoado das Américas, mas está tão sobrepovoado quanto a Alemanha:
tem quase a mesma quantidade de habitantes por quilómetro quadrado.

Durante os seus dias no Haiti, o deputado Wolf não só foi golpeado pela
miséria como também foi deslumbrado pela capacidade de beleza dos pintores
populares. E chegou à conclusão de que o Haiti está sobrepovoado... de
artistas.

Na realidade, o álibi demográfico é mais ou menos recente. Até há alguns
anos, as potências ocidentais falavam mais claro.

A tradição racista

Os Estados Unidos invadiram o Haiti em 1915 e governaram o país até 1934.
Retiraram-se quando conseguiram os seus dois objectivos: cobrar as dívidas
do City Bank e abolir o artigo constitucional que proibia vender plantações
aos estrangeiros. Então Robert Lansing, secretário de Estado, justificou a
longa e feroz ocupação militar explicando que a raça negra é incapaz de
governar-se a si própria, que tem "uma tendência inerente à vida selvagem e
uma incapacidade física de civilização". Um dos responsáveis da invasão,
William Philips, havia incubado tempos antes a ideia sagaz:
"Este é um povo inferior, incapaz de conservar a civilização que haviam
deixado os franceses".

'A reunião', de Aland Estime.

O Haiti fora a pérola da coroa, a colónia mais rica da França: uma grande
plantação de açúcar, com mão-de-obra escrava. No Espírito das leis,
Montesquieu havia explicado sem papas na língua:
"O açúcar seria demasiado caro se os escravos não trabalhassem na sua
produção. Os referidos escravos são negros desde os pés até à cabeça e têm o
nariz tão achatado que é quase impossível deles ter pena. Torna-se
impensável que Deus, que é um ser muito sábio, tenha posto uma alma, e
sobretudo uma alma boa, num corpo
inteiramente negro".

Em contrapartida, Deus havia posto um açoite na mão do capataz. Os escravos
não se distinguiam pela sua vontade de trabalhar. Os negros eram escravos
por natureza e vagos também por natureza, e a natureza, cúmplice da ordem
social, era obra de Deus: o escravo devia servir o amo e o amo devia
castigar o escravo, que não mostrava o menor entusiasmo na hora de cumprir
com o desígnio divino. Karl von Linneo, contemporâneo de Montesquieu, havia
retratado o negro com precisão científica:
"Vagabundo, preguiçoso, negligente, indolente e de costumes dissolutos".
Mais generosamente, outro contemporâneo, David Hume, havia comprovado que o
negro
"pode desenvolver certas habilidades humanas, tal como o papagaio que fala
algumas palavras".

A humilhação imperdoável

Em 1803 os negros do Haiti deram uma tremenda sova nas tropas de Napoleão
Bonaparte e a Europa jamais perdoou esta humilhação infligida à raça branca.
O Haiti foi o primeiro país livre das Américas. Os Estados Unidos haviam
conquistado antes a sua independência, mas tinha meio milhão de escravos a
trabalhar nas plantações de algodão e de tabaco. Jefferson, que era dono de
escravos, dizia que todos os homens são iguais, mas também dizia que os
negros foram, são e serão inferiores.

'Lavadeiras', Watson Etienne.

A bandeira dos homens livres levantou-se sobre as ruínas. A terra haitiana
fora devastada pela monocultura do açúcar e arrasada pelas calamidades da
guerra contra a França, e um terço da população havia caído no combate.
Então começou o bloqueio. A nação recém-nascida foi condenada à solidão.
Ninguém lhe comprava, ninguém lhe vendia, ninguém a reconhecia.

O delito da dignidade

Nem sequer Simón Bolívar, que tão valente soube ser, teve a coragem de
firmar o reconhecimento diplomático do país negro. Bolívar havia podido
reiniciar a sua luta pela independência americana, quando a Espanha já o
havia derrotado, graças ao apoio do Haiti. O governo haitiano havia-lhe
entregue sete naves e muitas armas e soldados, com a única condição de que
Bolívar libertasse os escravos; uma ideia que não havia ocorrido ao
Libertador. Bolívar cumpriu com este compromisso, mas depois da sua vitória,
quando já governava a Grande Colômbia, virou as costas ao país que o havia
salvo. E quando convocou as nações americanas à reunião do Panamá, não
convidou o Haiti mas convidou a Inglaterra.

Os Estados Unidos reconheceram o Haiti apenas sessenta anos depois do fim da
guerra de independência; enquanto Etienne Serres, um génio francês da
anatomia, descobria em Paris que os negros são primitivos porque têm pouca
distância entre o umbigo e o pénis. Por essa altura, o Haiti já estava em
mãos de ditaduras militares carniceiras, que destinavam os famélicos
recursos do país ao pagamento da dívida francesa. A Europa havia imposto ao
Haiti a obrigação de pagar à França uma indemnização gigantesca, a modo de
perdão por haver cometido o delito da dignidade.

A história do assédio contra o Haiti, que nos nossos dias tem dimensões de
tragédia, é também uma história do racismo na civilização
ocidental.

18/Janeiro/2010
O original encontra-se em www.resumenlatinoamericano.org, Nº 2146


E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto
E nenhum no marginal
E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
Notar um homem mijando na esquina da rua sobre um saco
Brilhante de lixo do Leblon
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo
Diante da chacina
111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos
E quando você for dar uma volta no Caribe
E quando for trepar sem camisinha
E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba
Pense no Haiti, reze pelo Haiti
O Haiti é aqui'

Assim termina a música "Haiti" de Caetano Veloso e Gilberto Gil.


Sempre ouvi falar do HAITI como um qualquer sítio que imaginei paradisíaco e de palmeiras, chega-nos agora aos jornais por um sismo... provalvemente perdurará o esquecimento até novo sismo, o HAITI que nos foi agora apresentado não lembra miami, é uma revolta que diz que há povos esquecidos no GLOBO... ficarão até...?

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