Porque se formos sensíveis e nostálgicos são poemas! (Henry Miller)
E deles nasce vida, todo o bebé que nasce, nasce no caos.
São sempre esperança de coisas presentes no futuro.
Carta a um filho após o atentado de Manchester (João Miguel Tavares)
Numa guerra onde há quem queira destruir tudo o que amas, continuares
a ser quem és e a fazer o que te apetece é a mais bela forma de
resistência.
Ainda há cinco dias estavas no Meo Arena a assistir ao filme-concerto
do Harry Potter – tenho pensado nisso nos últimos dias. Aquilo que
aconteceu em Manchester poderia ter acontecido em Lisboa. Nós temos a
sorte de viver num país pequeno, com uma comunidade muçulmana pacífica e
integrada, mas os terroristas islâmicos odeiam da mesma forma ingleses,
americanos, franceses, belgas, alemães, suecos ou portugueses – não
porque lhes tenhamos feito alguma coisa, mas porque não aceitam a
maneira como vivemos. Odeiam-nos por aquilo que somos, e esse é o pior
ódio de todos. Para eles, o bem que possas fazer ao longo da tua vida
não compensa todo o mal que representas neste momento. É uma ideia
horrível, eu sei, mas não desesperes: cada um de nós tem a arma certa
para combater essa ideia. O papá, a mamã, os teus manos – e tu também.
Desde logo, perante tanto ódio, a primeira coisa que deves sentir não
é medo, mas gratidão. Uma gratidão profunda por teres tido a sorte de
nascer em liberdade, num país democrático, onde cada um de nós – e
também os partidos, o Governo, os tribunais – acredita que todas as
pessoas têm os mesmos direitos, sejam elas velhas ou novas, ricas ou
pobres, cultas ou analfabetas, homens ou mulheres, cristãs, muçulmanas
ou ateias. Os terroristas islâmicos não aceitam isso. Aliás, eles odeiam
tais ideias. Mas foram esses princípios, pelos quais muitos homens bons
e corajosos lutaram e morreram ao longo dos séculos, que nos deram tudo
o que temos: a paz, a prosperidade, a possibilidade de cada um alcançar
os seus sonhos se trabalhar o suficiente e tiver suficiente talento. Eu
sei que tu nunca conheceste outra forma de viver, e dás isso por
adquirido, mas há muita gente que não tem a tua sorte. Tens o dever de
honrar a memória de todos os que lutaram – e ainda lutam – pela
liberdade.
Outra coisa que tens de fazer, apesar de todo o horror
que vês na televisão, é lembrar-te que por cada gesto de ódio há mil
gestos de bondade. Por cada terrorista que se faz explodir há mil
pessoas que ajudam as outras, que as levam a casa, que lhes dão abrigo,
que curam as suas feridas, que as consolam. A esmagadora maioria das
pessoas à tua volta é gente boa, que todos os dias dá o seu melhor.
Nunca, mas nunca, cedas ao desespero de achar que no mundo a maldade
supera a bondade. Se nós hoje vivemos muito melhor do que há mil anos,
se hoje em dia o mundo é um lugar muito menos violento, é porque no
coração do ser humano a luz ganha às trevas. Pode não ganhar todas as
vezes. Pode não ganhar durante muito tempo. Mas a bondade, o amor e a
justiça são para nós o que os dentes e as garras são para os predadores –
instintos preciosos que preservaram a nossa espécie ao longo de
milénios.
E nunca te esqueças: apesar do teu tamanho e da tua idade, já tens a
arma mais importante de todas para combater estes homens terríveis.
Esquece as pistolas e os coletes à prova de bala – a melhor forma de
derrotar os terroristas é continuares a fazer o que fazes todos os dias.
Não deixares de ir a um concerto porque tens medo. Não deixares de
viajar porque tens medo. Não deixares de ser simpática para quem é
diferente de ti porque tens medo. Podes sentir medo, claro. Mas a tua
coragem deve superar esse medo. Numa guerra onde há quem queira destruir
tudo o que amas, continuares a ser quem és e a fazer o que te apetece é
a mais bela forma de resistência.
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