10 julho 2021

história de um larápio em mundos passados

O ROSSIO NA BETESGA

Palácio Burnay, visita a um defunto

A visita, clandestina, de Afonso Reis Cabral ao palácio abandonado na rua da Junqueira desde que deixou de ser sede do ISCSP.

Caminhava pela rua da Junqueira, longe de pensar em invasão de propriedade privada, quando passei à porta do defunto. É como lhe chamo: ancorou como pequeno palácio frente ao Tejo no século XVIII, com aqueles torreões acastelados, e entretanto o rio recuou por causa dos aterros, dando ao defunto espaço para crescer – foi casa de Verão dos patriarcas e depois andou por aí meio vendido, a ir com todos, até ser agarrado por Henrique Burnay em 1880.

Este, de tanto gostar dele, deu-lhe novas alas, um teatro, estufas e aquecimento central; mas o defunto, ingrato, vendeu-se ao Estado nos anos quarenta, e com esse proprietário ficou até hoje. E acabou sem ninguém, porque está abandonado.

Fica no 86, embora os cento e cinquenta metros de fachada sejam demasiado grandes para um número apenas.

Eu não pensava visitá-lo mas uma janela aberta encontrou-me. E disse-me muito seriamente que visitar os necessitados é uma obra de caridade. Espreitei, vi um átrio de pedra de tal modo vazio que já era um tanto meu.

Pareceu-me que visitar sozinho o defunto tirava-lhe metade do encanto, e metia um bocado de medo. A invasão pareceu-me interessar a um escritor. Telefonei ao meu amigo Hugo Mezena, que acedeu de imediato, decerto prevendo alguma literatura. «Mas traz um colete amarelo», disse-lhe. Lembrava-me de ler sobre um ladrão que usava os coletes amarelos para resolver quase todos os obstáculos: muito à vista mas camuflado, assim vestido ninguém questionava que partisse janelas e arrombasse portas.

Entrámos pela minha janela com calma e sem disfarçar, enquanto eu dizia: «O cliente nunca está satisfeito com a vistoria, já é a terceira vez que voltamos ao local», e o Hugo repetia: «Nunca satisfeito, nunca satisfeito».

Por dentro, o defunto estava mesmo morto: na entrada de pedra já não havia nenhum Burnay, nem um dos nove filhos do primeiro Henrique; outro tanto para os patriarcas de Verão e para os professores e alunos que ocuparam o edifício a partir da segunda metade do século XX. Devem ter assistido ao degredo da casa, os frescos agarrando-se frágeis aos tectos, e foram-se todos embora. É muita ingratidão para tanto palácio.

Embora abandonado, hoje a desenvencilhar-se sozinho, o meu defunto, o meu palácio, ainda não deu completamente de si. Vai tentando tapar a incúria com as mãos. Algumas partes já estão bastante ao léu: as duas estufas quebradas pela testa e alguns salões de portas abertas para o jardim onde, em 1907, os Burnay deram um garden party de abanar Lisboa. E há partes que se aguentam pela força do hábito: o salão de jantar, o hall da escadaria principal.

Os nossos quatro passos fariam eco se as tábuas não suassem humidade, se os veludos e as tapeçarias e essas coisas com que, no século XIX, se revestiam as casas não cobrissem as paredes. «Isto é inacreditável», dizia o Hugo enquanto percorríamos as divisões, espécie de jogo de Tétris onde se encaixou a opulência e a incúria. «É inacreditável», dizia eu.

Nas alas à esquerda e à direita do maciço principal, vimos as muitas marquises que faziam de salas de aula da Universidade de Lisboa. Um poster indicava a data mais recente do defunto, 2016.

Mas em cima, no torreão principal, uma agenda de 1997 marcava para as 15h30 do dia 23 de Junho um «Conselho Administrativo (Extraordinário)», seguido de «Lembrar à Guidinha daquele assunto com o sacana do João».

Depois da estufa ocidental, rebentou-se-nos no olhar um teatro de cem lugares. Nos frescos do tecto, os querubins de Malhoa dançavam e divertiam-se e faziam as seis artes. À entrada, os visitantes como nós deixam mensagens num quadro de escola. Foge foge foge foge, escreveu alguém a giz.

A morte é que não consegue fugir: enterrou-se demasiado neste abandono, vive só e em desgaste. Nem sequer abriga um pedinte. E não tarda o telhado começará a abater e o palácio morrerá como muita gente: pela cabeça.

Visitávamo-lo havia uma hora quando senti a falta de fantasmas. De espectros e outras aparições. Uma casa destas não é uma casa destas sem uma taxa mínima de sobrenatural. Como não tenho jeito para essas histórias, pensava que os roll-ups com fotografias dos antigos Burnay eram fantasmas suficientes quando me lembrei de que o Hugo Mezena é escritor. Calha bem, ter um escritor à mão.

Pedi-lhe um fantasma, e ele inventou este:

«– Ei, por aqui! – ouvimos. E uma brisa suave, quase imperceptível, agitou os nossos coletes. – Por aqui! Vamos!

Não tínhamos ainda percebido os contornos da exígua divisão na qual nos encontrávamos quando, por baixo de uma das clarabóias pelas quais entrava uma luz a que os nossos olhos se demoravam a acostumar, a ténue figura se materializou. O ar era distinto. O ar de quem não gostava, já em vida, de ser importunado. E agora, com tantos anos daquela recatada existência, tinha mais que fazer do que aturar curiosos, malandros que se dedicam a vasculhar casas alheias, tratantes que se pavoneiam de remexer as coisas dos outros, convencidos de que estes já não se encontram lá. Mas havia que aguentar o frete.

– Por aqui! Vamos! – continuou o espectro. – Vou levar-vos àquilo que realmente vos trouxe cá. Algo reservado aos curiosos, aos temerários, aos que seguem a sua aventura até ao fim. Isto desde que prometam deixar-me em paz logo de seguida.

– Prometemos – dissemos num ápice.

– E de uma vez por todas.

– Tem a nossa palavra.»       

Seguimos os três para o pináculo do torreão, a única parte do palácio que nos faltava mapear. Acede-se por uma escada em caracol a partir do sótão: e, quando nada indica, estamos numa sala ampla, no meio da qual nova escada em caracol permite subir para o pináculo. Permite ou não permite, consoante a madeira apodrecida se desfaça sob os pés.

Lá de cima, num único ponto rodeado de janelas, Lisboa foi mesmo minha. Às rédeas de um palácio que eu conquistara, a cidade rolava com deferência. Rolava para mim, toda ao ritmo da minha música.

Mas tive de descer rapidamente, porque os passos do Hugo (que não deve pesar mais de oitenta quilos) faziam tremer a escadaria. Os passos do fantasma não se sentiam. A estrutura de madeira desmoronar-se comigo de arrasto seria uma boa vingança do defunto, mesmo que não lhe tivéssemos feito mal.

O fantasma riu-se, disse «Isto está assim há muito tempo, não é agora que desaba», e foi assombrar outros metros quadrados.

Saímos do palácio Burnay sob a alçada do colete amarelo. Fizéramos mais uma vez o levantamento que o cliente pedia, não repetíamos a empreitada. Obrigarem-nos a entrar de novo naquela espelunca já era abuso.

No fim, passámos de mota por uma esquadra da PSP. Não resisti. Parei: «Desculpe lá, senhor agente, mas aquele palácio abandonado na Junqueira tem uma janela aberta ao nível da rua.» Disse o agente que volta e meia há quem invada, mas eles – que azar do caraças – nunca conseguiram apanhar ninguém. E eu só pude concordar e lamentar-me: «Naquele estado, qualquer idiota entra!»

Sem comentários: