16 setembro 2022

Como afastar adeptos dos estádios: um manual


A Liga de Clubes diz que uma das prioridades este ano foi o “regresso das famílias aos estádios”. E isso é tudo muito bonito em teoria e nas intenções, analisa Bruno Vieira Amaral, ao escrever sobre a criança de 10 anos que, na bancada do estádio do Famalicão-Benfica, foi obrigado a despir a camisola da equipa que apoia: “há ideias que nunca chegam a sair do papel e há outras que nunca deviam ter chegado ao papel porque, quando chegam, podemos ter a certeza de que haverá sempre alguém alegremente disposto a aplicá-las”

12.09.2022 ÀS 12H33

DEFODI IMAGES

Os adeptos de futebol em Portugal são uns privilegiados. Enquanto os jogadores levam cartões amarelos por despir a camisola na comemoração de um golo, nas bancadas os adeptos são obrigados a fazê-lo, ou seja, o que é proibido para o jogador é obrigatório para o adepto. Sortudos! Mas o melhor é não exagerar nos privilégios. Ainda bem que o adepto obrigado a tirar a camisola do Benfica por se encontrar em zona proibida, na chamada “bancada dos adeptos da casa” em que não são admitidas exceções à monocromia clubística, era uma criança. Imagine-se que fosse uma senhora ou um senhor mais complexados. Teríamos um caso bicudo para resolver, programação normal interrompida, diretos de nutricionistas via Skype, comentários do Presidente da República e do Dr. Quintino Aires (que lamento muito que não sejam a mesma pessoa).

Mesmo assim, não nos podemos queixar das instituições. Ao que parece, Pedro Proença agendou uma reunião. Valha-nos São Pedro! As reuniões são a aspirina das dores de cabeça da Liga. Qualquer que seja o problema, marca-se uma reunião. Em casos de maior gravidade, marcam-se logo duas não por não se acreditar que o problema seja resolvido à primeira, mas porque duas reuniões de rajada, anunciadas com aquele tom ponderoso de Conselho de Estado, revelam uma determinação irreprimível para marcar reuniões.

Diz a imprensa que essa reunião será com os diretores de segurança dos clubes a quem presumivelmente serão dadas indicações de comportamentos que os funcionários a seu cargo devem evitar: obrigar uma criança a ficar em tronco nu, empurrar pessoas em cadeiras de rodas pelas escadas abaixo, acariciar o crânio lustroso de um adepto careca, etc. Sabemos que são comportamentos quase irresistíveis, mas estes heróis têm de combater a sua própria natureza e usar o bom-senso. Dir-me-ão que exagero e distorço, que os regulamentos não obrigam a que as crianças fiquem em tronco nu na bancada dos adeptos da casa, que “apenas” proíbem a entrada de adereços associados ao adversário. Mas quando o resultado é esse, ninguém se livra da ignomínia usando como escudo a letra da lei.

O que me leva à hipótese de que a segurança terá feito mais do que aplicar, com zelo e imparcialidade, o regulamento. Suspeito de um prazer sádico na ortodoxia ainda que instigado pelo ambiente dos “adeptos da casa”. Os seguranças, cuja presença tinha sido notada pela última vez num túnel aqui há uns anos, têm agora uma área em que podem exercer a sua autoridade sem temor de serem espancados: de acordo com o artº 15.º, alínea c) do Código da Indumentária em Recintos Desportivos (que acabei de inventar), o segurança que detete a presença de um intruso menor de idade em zona proibida deve recorrer a todos os meios ao seu alcance, inclusive comunicações via rádio, para imobilizar o indivíduo e retê-lo até à chegada da polícia, devidamente acompanhada do polícia da moda ou avaliador de adereços.

Deve o segurança certificar-se que o indivíduo provocador retira a camisola e que não tem outra escondida nos calções, perguntando-lhe nomeadamente o seguinte: “por acaso não tens outra camisola escondida nos calções ou na bolsinha do teu pai?” Conhecendo a natureza manhosa e traiçoeira dos petizes, o segurança deve desconfiar de uma obediência célere às suas ordens. Mesmo pressionada pelos urros de adeptos da casa, a criança pode tentar vestir a camisola de novo com argumentos que não devem comover o representante da autoridade enquanto a autoridade não chega: ter frio, ter calor, estar a recuperar de uma pneumonia.

Agora, sim, exagero. A culpa não é minha, é dos cenários absurdos que os responsáveis do nosso futebol insistem em transformar em realidades risíveis. A Liga defende que medidas como esta são pensadas para trazer mais adeptos aos estádios e reforçar o sentimento de segurança dos que lá vão. Diz mesmo que uma das prioridades este ano foi o “regresso das famílias aos estádios”. E isso é tudo muito bonito em teoria e nas intenções. Mas como é que conciliamos essas ideias extraordinárias com o facto puro e duro de uma criança de dez anos acabar a ver um jogo meio despida? No nosso futebol ciclotímico, tão depressa vitorioso como logo a seguir deprimente, há ideias que nunca chegam a sair do papel e há outras que nunca deviam ter chegado ao papel porque quando chegam podemos ter a certeza de que haverá sempre alguém alegremente disposto a aplicá-las

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