Ocorreu-me que podíamos ter amigos específicos para diferentes tarefas: os que nos embalam, os que nos alimentam, os que nos abraçam, os que são de uma sinceridade que dói ou os que nos fazem rir. Alguns amigos são isto tudo.
A fortuna
Outra vez os amigos. Reencontrei-me com os mais antigos, aqueles que me dizem: “Porque tu sempre foste assim”, não sabendo eu que coisa é essa. Ou então os outros, espantados, que na sua boa-fé me asseguram que continuo igual. Como posso estar igual depois de tantas vidas arrumadas numa só vida?
Os amigos, reforço sempre, esse amor duradouro que mesmo depois de quebrar pode voltar ao início, parecem-me cada vez mais uma fonte de vida.
Aconteceu-me há dias saber que ia ao encontro de dois deles que me fazem rir, e o riso entre nós durou dias, ficou cá dentro incandescente. Uma magia rara. Ocorreu-me que podíamos ter amigos específicos para diferentes tarefas: os que nos embalam, os que nos alimentam, os que nos abraçam, os que são de uma sinceridade que dói ou os que nos fazem rir. Alguns amigos são isto tudo. Talvez sejam aqueles a quem chamamos “os melhores amigos”. É muito curioso chegar agora aos 52 anos e ainda dizer: “A minha melhor amiga.” Também digo “o meu amigo mais antigo”, como se exibisse a minha certidão de orgulho.
Apareceu há dias diante de mim o Chico, o rapaz mais bonito da escola secundária: muito alto, pernas tão grandes como os passos, os olhos de um verde-mar onde os barcos podiam aportar. Eu pensava que o Chico nunca iria reparar em mim. Eu era mais nova e ainda não estava certa de ter amigos. O Chico era bonito e punk, um moicano audaz muito bem recortado que fazia com que os olhos ainda se vissem melhor. O Chico não passava cartão a ninguém. Escolhia muito bem quem podia ouvir a sua voz grave que trazia a ironia de quem sabe que é bonito. Já não sei como, mas ficámos amigos. Lembro-me de querer ser mais crescida por causa dele. Lembro-me com exactidão desse sentimento de impotência perante algo que não podia mudar: não, eu não podia acelerar a velocidade do tempo e fazer-me da idade do Chico. Ainda assim, tinha a atenção dele. Eu de tranças fininhas a rir com o rapaz mais bonito da escola. O único punk. A única miúda que queria ser da idade dele. No nosso desencontro tão acertado, falávamos de música. Por vezes, o Chico deixava-me os seus desenhos. Guardei tudo durante anos, ciente do meu troféu. Os desenhos que confirmavam a nossa cumplicidade. Eu, o Chico, o Manecas e a Teresa. Depois fomos mais ainda, em cantos certos do polivalente marcando o nosso território. Sabíamos que não queríamos nada ser como os outros. A música empurrava-nos para outras alas. E assim foi até ao fim. O Chico, que foi punk e pintor, é agora avô. A velocidade do tempo manteve-se. Eu nunca o apanhei. Que desenhos deixará ele agora como rasto?
Passei uma noite inteira a rever amigos. Não os amigos da turma, mas os que escolhi ou que me escolheram. Esse sentimento de pertencermos a uma selecção comove-me. Não estamos ali por acaso, mas porque decidimos ficar, continuar a ver nos outros o que sempre nos fascinou: a inteligência, o humor, a generosidade. Ia dizer bondade, mas hesitei: quando somos novos, não percebemos ainda bem o que é isso da bondade. É mais tarde, quando os caminhos se clarificam e seguimos por avenidas diferentes, que vamos decidir se ficamos até quando a bondade não é a qualidade mais evidente daquela pessoa. Já agora, o que é isso da bondade nos amigos e fora deles? É perigoso decidirmos o que é a bondade. Prefiro, sem dúvida alguma, a generosidade.
Quando pertencemos à tal selecção que, afortunadamente, não é a turma do ano x, passamos por cima de muitas coisas, aceitamos outras, esquecemos várias que não nos manteriam assim unidos.
Entre amigos, quando éramos mais novos, ainda não sabíamos que nos podíamos abraçar. Descobrimos com a idade essa verdadeira fortuna.
Eu podia ficar o resto da vida nesse abraço.
O coração ainda bate.
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