03 dezembro 2023

ENTREVISTA A GAROTA NÃO.

Há muito que a música portuguesa precisava de uma voz assim, que (nos) toca nos botões certos com verdade, profundidade e generosidade desarmantes. Cátia Mazzari Oliveira, A Garota Não, distingue-se porque nos convoca para uma Beleza e uma justiça que julgávamos perdidas algures nos ideais das grandes revoluções. Esta Garota somos todos nós.




Podem dizer o que quiserem, mas não há outra garota assim na música nacional. Temos boas vozes, mas nenhuma com esta honestidade e delicadeza nas canções, a cantar o estado do mundo, dos temas urgentes de todos nós às aparentes insignificâncias que sentimos nos dias. Com simplicidade e grandeza raras, ela canta as sombras e a luz, "mesmo que te assuste a minha claridade".

Estreou-se em 2019, com Rua das Marimbas 7, uma rua inventada (mas que existe, no Brasil), um disco difundido digitalmente antes de nos chegar um CD com acabamento artesanal, porque ela queria que cada disco fosse um objeto único. O ano passado lançou 2 de abril onde a sua escrita enxuta e inteligente ainda se torna mais evidente quando dedica temas a humanistas como José Mário Branco, ou aos seus contrários em A sede do Xega; quando canta o desalento da gentrificação com Chullage, chora os naufrágios dos migrantes com Ohmonizciente, chama Ana Deus e Francisca Camelo para cantar o amor desavindo: "Saber cair é uma ciência" ou Luca Argel para cantar a paz, ou denunciar a violência doméstica ao lado dos Orelha Negra. Toda a gente quer a Garota Não que esgota matinés no Lux, muitas horas antes de as portas abrirem, e arrebata a festa dos Globos de Ouro num discurso que foi um poema. Ela não é moda passageira, aterrou-nos no colo para ficar e falar por todos nós no lado certo da vida. Que sorte a nossa ou, como diria Mário de Cesariny em A Cidade Queimada: "A realidade comovida agradece."

Foto: Nuno Batista

O que querias ser quando fosses crescida?

Eu queria ser muitas coisas ao mesmo tempo, isso foi um problema. Tinha um fascínio pelo Egito e por isso queria ser arqueóloga, adorava desporto e imaginava-me a jogar basquetebol, ténis, futebol e outros desportos a vida inteira. Depois quando fui crescendo, e por causa de um trabalho que fiz na escola, em Educação Visual e Tecnológica, cujo desafio era criar um logotipo e uma mensagem promocional para uma garrafa de água, descobri que gostava muito de pensar na forma como se comunica algo. Como se defende e amplifica uma mensagem. Depois sei lá… como cresci num bairro tão cheio de vulnerabilidades do ponto de vista familiar, social, económico, e sempre fui muito calada e observadora (porque tinha o privilégio de sair do bairro e apreender outras realidades, por andar na natação e em determinada altura estar a aprender piano), percebi que regressava aos "verdes e brancos" (como o bairro era conhecido) com uma mala que ninguém ali mais tinha. E isso não me fazia sentir especial no bom sentido. Era como se eu tivesse acesso a espaços que eram vedados aos outros miúdos com quem eu brincava na rua. E esse trânsito pendular de sair do bairro para o centro da cidade (onde havia as escolas de música, os equipamentos desportivos, os serviços concentrados) trouxe-me o amargo de boca que foi perceber que as oportunidades são brutalmente diferentes de território para território, mesmo tratando-se de uma só cidade. E esta aquisição, esta tomada de consciência, foi-se adensando em muitos outros episódios da vida e, nesse caminho, vamos percebendo se o lugar do qual queremos fazer parte é o dos privilegiados ou dos que lutam para que estar vivo seja em si o privilégio. Um privilégio universal. Onde miúdo nenhum vai para a escola de barriga vazia, por não haver o que comer em casa.

Então, um pouco mais tarde, e porque se foi desenvolvendo cá dentro um gosto particular por ir a concertos de Música, ver Cinema, algum Teatro, animou-me a ideia de criar e produzir eventos culturais que fossem consequentes do ponto de vista de uma mudança positiva das comunidades. Admiro muito gente como o José Pinho [da Ler Devagar], que transpõe a sua paixão (por livros, no caso), para um plano coletivo. Em que passa a ser uma paixão partilhada, potencialmente aprendida, ensinada. Na firme convicção de que espalhar o que de mais precioso se tem é terreno aberto para um lugar mais fértil e horizontal para outros.

"As oportunidades são brutalmente diferentes de território para território"
Foto: Nuno Batista

A música entra na tua vida pela porta principal, pela entrada de serviço ou por um alçapão mágico no teu quarto de adolescente?

Entra por várias portas. Fiz "canções" (e chamá-las assim é abusar da boa vontade) desde muito cedo, antes mesmo de tocar algum tipo de instrumento. A minha professora da primária (Georgina de Oliveira e Silva!) era muito alegre e cantávamos muitas vezes nas aulas. Músicas de outros ou com poemas inventados por nós. E à distância, vejo que essas brincadeiras não só me divertiam muito como foram potenciando uma certa predisposição que eu pudesse ter para me pôr a escrever e cantar por cima disso. As mulheres da minha família, à exceção da minha irmã, a quem nunca ouvi cantar, tinham todas este movimento muito espontâneo de se porem a acompanhar tarefas ou a ocupar tempos livres com cantorias. Cantavam na lida e cantavam a vida. Acho mesmo que era uma forma de tornarem os dias mais leves. Um pouco o princípio do "quem canta seus males espanta". Na verdade não espantavam os trabalhos duríssimos que tinham, e também não lhes crescia no bolso o dinheiro básico que faltava ainda o mês ia a meio, mas há qualquer coisa no canto que apazigua dores e sofrimentos. Eu tomo boas doses de música por isso mesmo. Às vezes é como encontrar uma fonte límpida e fresca no meio de uma convulsão interna. É que a vida, às vezes, pode ser um lugar muito violento e inóspito.

Depois havia também o meu pai e o meu irmão, que sempre gostaram muito de música. O meu pai cantava-me a Maria Faia em loop quando eu ainda fazia sestas depois de almoço. E comprava cassetes que ouvimos até gastar a fita. Lembro-me também do meu irmão, já adolescente (e três anos mais velho) ficar meses a juntar dinheiro para comprar discos. É um mau canário, dá cabo das canções, mas é muito curioso e interessado. E ter um irmão mais velho que nos guia na descoberta de novos planetas musicais foi uma grande pérola no meu caminho. De resto… houve a Solange e outros amigos. Vê-los pegar em violas fazendo serões desgarrados (muitas vezes com composições suas) sempre me rendeu grande gozo, sempre me deu muita vontade de desatar, também eu, a fazer canções.

"É que a vida, às vezes, pode ser um lugar muito violento e inóspito."
Foto: Nuno Batista

Estudaste na Faculdade de Letras, o teu amor às palavras é antigo, foram uma alma mater? Eras daquelas crianças agarradas aos livros, que títulos te marcaram? O que têm as palavras de tão mágico?

Eu gostava de ler. Tinha alguns livros em casa – daquelas coleções de literatura e livros mais ou menos generalistas das Seleções do Reader’s Digest. E requisitava amiúde livros das bibliotecas. Nem sempre os lia, não tinha tempo. Porque o mundo tinha tantas janelas para abrir! Mas lia. Sempre adorei fábulas. E depois ia pegando em livros aleatórios na estante e foi assim que dei, por exemplo, com a Florbela Espanca. Era muito miúda, mas lembro-me de chorar comovida com vários sonetos dela. E de os decorar por me dizerem muito (sei-os até hoje, ao contrário de algumas letras das minhas canções. Títulos que me marcaram? Os Meus Amores, de Trindade Coelho, os Esteiros do Soeiro Pereira Gomes. O que têm as palavras de tão mágico? A possibilidade de criarmos Beleza onde quer que se vá, onde quer que se esteja. Elas dão-nos a oportunidade de sermos melhores.

Encaixas numa linhagem de cantautores, como José Afonso e Fausto ou Sérgio Godinho, que depois misturas com uma certa tropicalidade. A Música também pode ser política?

Tudo pode ser política. As lojas onde entramos, a forma como usamos a água e a luz em casa. Como se define que uma criança pode estar sentada à mesa – e por sistema – com um tablet à frente. Para mim, tem a ver com escolhas, com cidadania. A música pode ser política no conteúdo e na sua forma. Quando eu escolho produzir discos cosidos à mão e sem usar plástico, ou produzir vinis na única fábrica portuguesa que existe a fazer este tipo de cena (mesmo que isso encareça preços e me retire margens de lucro), eu estou a fazer um caminho político. Não sou melhor por isso, mas se posso escolher, escolho o que me parece bem. No conteúdo… é o que cada um de nós sente que tem para entregar.

Cresceste num bairro social em Setúbal – de que forma é que esse detalhe te moveu e levou a escreveres canções?

Tive a sorte de conhecer duas realidades, a do bairro, e a que lhe era exterior. Tudo era diferente. A forma de vestir, o asseio das mãos, a maneira de falar, os assuntos, como se passavam as férias, como era o Natal. E fui ganhando raiva de nos ver a todos tão pequenos, mas com círculos de proteção e oportunidades tão diferentes. O que seria cada um de nós se tivesse nascido noutro lugar? E, no fundo, é este o novelo – o da observação da vida – que uso para fazer as minhas rendas… :)

"Tive a sorte de conhecer duas realidades, a do bairro, e a que lhe era exterior"
Foto: Nuno Batista

Que temas quiseste trazer, desde o primeiro momento, para a tua música – que, já disseste, não é de intervenção, mas de inconformismo porque te magoam certas realidades?

O da violência doméstica, por exemplo, mas acho que não tinha encontrado as palavras para o fazer antes da parceria com Orelha Negra. Tinha este tema aqui muito recalcado. Conheci casos muito brutais. A morte acaba por ser um tema recorrente. A morte física e emocional de alguém, a rejeição dessa condição e a mágoa que fica quando sentimos que há mortes adiáveis se houver cuidados médicos adequados. Se houver investimento e gestão criteriosa de recursos de saúde. E depois há a corrupção, que é uma outra forma de morte – metafórica – da ética, da honestidade, dos valores de democracia.

Uma das qualidades bonitas da tua música é a sensibilidade e a profundidade, a intimidade que transmite. Não achas que o mundo se superficializa cada vez mais e talvez nos falte mais desta proximidade entre as pessoas?

O que eu sinto, por experiência própria e em algumas conversas que vou tendo, é que o advento dos telemóveis e da Internet móvel, que trouxe a possibilidade de estarmos todos ligados e contactáveis 24 horas por dia, foi uma revolução para a qual não estávamos preparados. Imprimiu alterações tremendas de hábitos e de comportamentos. E se, num primeiro momento, (falamos de duas décadas essencialmente) nos pareceu tudo muito fascinante – porque, de repente, se abriu uma comporta para o mundo, o mundo estava logo ali – então a vizinha do lado perdeu importância, porque nos tornámos todos amigos digitais de pessoas que mal conhecemos, e a quem nunca poderemos pedir que nos dispense a cebola ou os coentros que nos esquecemos de comprar. Noutro plano, os campos de jogos dos bairros perderam os miúdos porque eles agora jogam em casa. Até podem jogar uns com os outros – mas cada um em sua casa! Que coisa mais perversa!

Mas o que sinto, e voltando ao início, é que há muita gente que começa a ficar cansada de estar sempre contactável. Desta obrigatoriedade de estarmos presentes e imediatamente responder. De termos tantos "amigos" de quem nem nos lembramos, se não forem as suas publicações nas redes sociais a entrarem-nos olhos adentro. E em parte essa superficialização que referes, na minha opinião, deriva muito da forma como reorganizámos as nossas relações nestas décadas de supremacia digital. Mas OK! Está bom, já vimos como é. E acho mesmo que estamos a entrar num momento diferente, de reequilibrar forças, de preservarmos mais o espaço privado, de nos deixarmos invadir menos, de fazermos fatias douradas e irmos oferecer um prato delas à vizinha.

"Há muita gente que começa a ficar cansada de estar sempre contactável"
Foto: Nuno Batista

Temos cada vez mais perspetiva, mais jovens qualificados e acesso à informação, mas parecemos ter cada vez menos horizonte. Se te fosse dado o poder de mudar já um bocadinho do mundo, por onde começavas? E porquê?

Investia na escola. Na educação. Diz-se muito essa frase de "temos a geração mais qualificada e bem preparada de sempre", mas que tipo de qualificação? É por se ter um curso superior que se tem horizontes mais abertos para o outro, para os princípios que regem, por exemplo, a nossa Constituição? E fazer parte desse rol dos mais bem preparados de sempre, o que significa? Que se está preparado para viver em comunidade? Para promover o bem-estar próprio ignorando o resto, ou um bem-estar coletivo? Investia em educação. Questionava o sistema de ensino que temos, as reformas que têm sido feitas, tantas vezes tão inconsequentes e descontinuadas.

Não te parece que o ativismo vive um momento extremado e irracional que pode ensombrar a sua mensagem humanista? O que pensas sobre a cultura do cancelamento?

Acho pavorosa a cultura do cancelamento. E não chamo ativismo a muito do que vejo. Ativismo é fazer a defesa de alguma coisa em que se acredita. Implica protesto, implica manifestação de desagrado, implica disrupção em relação a um modelo. Mas acima de tudo, para mim, implica um sentido honesto de construção e não o seu contrário. Acho que estamos confundidos com o sentido da visibilidade das causas.

"Ativismo é fazer a defesa de alguma coisa em que se acredita"
Foto: Nuno Batista

Pareces ser reservada: gostas de estar em palco ou morres de medo de cada vez que encaras um público com uma luz em cima?

Morro de ansiedade meia hora antes de cada concerto e ressuscito algures pela 5.ª ou 6.ª canção do alinhamento. Vale-me ter muitas vidas de crédito.

A Máxima é uma revista feminista desde a sua fundação, há 35 anos. Já nasceste num mundo muito mais aberto às raparigas, mas o que achas que ainda nos limita? Alguma vez quiseste ser menino, nem que por momentos?

Nunca quis ser menino. A pessoa mais admirável que conheci foi a minha mãe. Foi uma mulher extraordinária. Não digo isto por facilitismo, foi assim mesmo. E sinto que descender de uma pessoa tão valiosa me ensinou a ter muito respeito pela minha condição de mulher. O que nos limita… não trabalharmos mais em conjunto, (profissionalmente e nas redes de apoio, de família e amigas), acharmos que somos fracas se nos apetecer chorar, que somos egoístas se não amamentamos o bebé até aos 4 anos de idade… Ainda nos limita, não obstante toda a conversa que se tem feito sobre comportamentos abusivos, o olhar discriminatório ou babado de quem emite parecer na rua sobre o que levamos vestido. Ainda nos limita o espírito subserviente de dona de casa (é certo, os homens já participam nas tarefas, mas a balança continua muito mais pesada num dos pratos). Ainda nos limita que sejamos mulheres, menstruemos, tenhamos licença de maternidade para parir. E que isto dite cargos, posições, estatutos, vencimentos

Quais são os teus gostos nas que foram sempre designadas de "coisas de rapariga", e que cada vez são mais de todos num tempo em que já se percebeu que Oscar Wilde tinha razão quando dizia que "só as pessoas fúteis acham fúteis as coisas fúteis"? Quais são as tuas "coisas fúteis" preferidas?

Acho que a minha coisa mais fútil é gostar de comprar ténis e casacos. E fútil no sentido em que compro sem estar propriamente a precisar. Não é como se não tivesse mais nada para calçar, mas também não sei se isso entra no catálogo da futilidade. Na verdade acho que se aplica muitas vezes mal esta ideia. Porque fútil é uma coisa sem valor, sem interesse. Mas cuidar da pele, ter as unhas limpas, o cabelo hidratado, uma roupa que nos faça sentir bonitas… isso não é ser fútil, é? A menos que a gente passe três dias por semana no salão de cabeleireiro e outros dois no centro comercial, sem fazer mais nada com a vida.

O que gostas de fazer quando não estás a trabalhar?

Escovar, abraçar e brincar com cães. Dar mergulhos no mar. Comer e beber. Estar com o Miguel. Fazer canções.

"A pessoa mais admirável que conheci foi a minha mãe"
Foto: Nuno Batista

Escreves música também para te sossegar o coração. Que outras coisas te sossegam o coração, para além da música? E o que te (co)move?

Assistir à gentileza espontânea e desinteressada comove-me. Seja num episódio na rua, num filme ou num livro. Seja comigo ou com algum estranho. Sossega-me caminhar com o meu pai pela Serra da Arrábida quando estou desarrumada. Sossega-me ouvir a chuva a cair sobre a claraboia quando estou deitada. Sossega-me limpar a casa enquanto oiço um podcast ou um disco bom. Sossegam-me alguns abraços, fazer festas em animais e sobretudo sossega-me escrever e cantar em mantra até secar as bolsas lacrimais.

Que projetos bonitos, ou coisas malucas, tens em mente para os anos que vêm?

Um projeto muito bonito e desafiador: ter tempo.

Acreditas em algum tipo de magia?

Acredito que o amor é uma forma de magia. Tem muitos poderes.

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