08 dezembro 2023

incluem-se surdos que estão como dentro de uma bolha...

A história do árbitro a quem a surdez não impede de apitar

A carreira de David Santos é uma demanda por igualdade, ética, inclusão e quebra de preconceitos no desporto. Ser árbitro surdo é espinhoso, mas nem tudo é mau – pelo menos, não ouve os insultos.

RG Rui Gaudêncio - 02 Dezembro 2023 -  David Santos, árbitro surdo mudo, apita o jogo de futsal entre o Caxias e o  Liberdade. Caxias. Portugal. Público
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RG Rui Gaudêncio - 02 Dezembro 2023 -  David Santos, árbitro surdo mudo, apita o jogo de futsal entre o Caxias e o  Liberdade. Caxias. Portugal. Público
RG Rui Gaudêncio - 02 Dezembro 2023 -  David Santos, árbitro surdo mudo, apita o jogo de futsal entre o Caxias e o  Liberdade. Caxias. Portugal. Público

Depois, trata-se de correr de um lado ao outro da quadra de futsal, de apito na mão. Usá-lo para apitos diversos: umas vezes fortes, outras nem tanto – no caso de David, a gestão do jogo e a comunicação dependem ainda mais do uso claro e diferenciado do apito.

Trata-se ainda de ser insultado, mas não ouvir. Comunicar, mas sem verbalizar frases facilmente perceptíveis. Acalmar a ira dos jogadores, mas sem diálogos complexos. Um “tenha calma, senhor jogador. Concentre-se no seu jogo, que eu trato da arbitragem” não faz parte dos predicados de David Santos na gestão de um jogo.

“Eu consigo comunicar verbalmente. Há quem me entenda e há quem não me entenda, devido ao meu sotaque de surdo. Eu sou surdo de nascença, a minha língua materna é a língua gestual portuguesa. Com as mãos também consigo falar, mas há quem me perceba e há quem não me perceba”, explica ao PÚBLICO este técnico de backoffice de farmácia, numa conversa mantida em registo escrito.

Temos, portanto, um árbitro que tenta comunicar verbalmente, mas com dificuldade para ser entendido por todos. E temos jogadores e treinadores que, em geral, não dominam a linguagem gestual. “É comum os jogadores perguntarem o motivo das faltas que os árbitros assinalam. No meu caso, explico através da mímica para eles saberem o motivo”.

Sem audição e sem ser entendido verbalmente por toda a gente, David Santos faz uso de outras ferramentas, nomeadamente a mímica e a visão mais apurada. E assim continuará, na demanda pela igualdade, ética, inclusão e quebra de preconceitos no desporto.

“Um mudo e uma gaja”

No momento da saudação inicial, o PÚBLICO anotou os três primeiros comentários na bancada de um jogo de futsal, sobre a equipa composta por David Santos – que é surdo – e uma árbitra – que ouve e fala sem dificuldades, mas que, para alguns adeptos, tem a desagradável e muito limitadora desvantagem de ser mulher.

- Ehhh hoje é o mudo...

- Um mudo e uma gaja…

- Mas podemos insultá-lo na mesma?

- Poder podemos, mas ele não vai ouvir…

Mais tarde, a coisa ficou mais cáustica, depois de uma jogada que um adepto queria que fosse punida com infracção.

- Este tipo não fala, não ouve e pelos vistos também não vê…

Pouco depois, mais um enxovalho:

- Olha a gaja lá do outro lado a gritar “sem falta”...

- Pelo menos já falou mais do que o mudo…

Soltam-se risos na bancada – de quem disse a piada, com riso auto-elogioso, mas também de quem a ouviu. Lá dentro, David Santos não faz ideia do que lhe vão dizendo. Ou talvez faça, mas não ouve.

Surdo de nascença, este árbitro de 36 anos arbitra jogos de futsal numa certa “redoma auditiva”. É difícil? Em muitos aspectos, sim. Mas nem tudo é mau. “É como se estivesse dentro de uma bolha, totalmente concentrado no que acontece em campo. Nesse sentido é uma vantagem, sim, porque o papel de árbitro é difícil. É necessário muito rigor e o facto de não ouvir permite que não me distraia com coisas que acontecem à minha volta. E a concentração é máxima”, explica ao PÚBLICO.

Desmistificar preconceitos

Lá dentro, no rectângulo, David tinha uma "amiga" – a árbitra que o acompanhou. Uma amiga “contra” dez jogadores que, não sendo inimigos, estão longe de se predisporem a ajudar o árbitro a ser feliz naquela hora e meia de futsal.

Há os que querem enganá-lo, os que se calam quando ele se engana e os que estão de “faca afiada” para o rodearem nas decisões mais dúbias. Muitos árbitros dizem que, apesar de terem colegas consigo, esta é uma tarefa solitária. Para David, sê-lo-á mais ainda, por actuar na tal redoma auditiva.

Porquê prestar-se a isto? “Eu sou apaixonado pela bola desde pequeno. Desde criança que sou apaixonado por futebol, futsal e tudo o que tenha bola. Escolhi o futsal por sentir que há mais união: é tudo dentro de uma sala, basicamente”.

Para David, um jogo de futsal não é apenas isso. É como um grito por igualdade, inclusão e tolerância, como o próprio define por outras palavras. “A ver jogos fiquei interessado em tirar o curso de arbitragem e cá estou. A estrutura acolheu-me e deu-me condições para desempenhar esta função tão intrigante como a de gerir um jogo. No fundo, cumpro um sonho em cada jogo que vou apitar, pois dessa forma desmistifico preconceitos”.

Não ouve, mas vê

Observar um jogo arbitrado por David Santos é um exercício interessante, porque provoca dinâmicas diferentes das habituais.

Numa jogada que queria punida com infracção do adversário, um jogador dirigiu-se para David Santos, em protesto. No segundo seguinte, lembrou-se de que não iria obter nada em troca e virou costas.

Mais tarde no jogo, o mesmo jogador, após algumas cargas de adversários em poucos minutos, foi tomado pela ira. Virou-se novamente a David Santos, o árbitro mais próximo, mas, uma vez mais, foi rápido a lembrar-se de que seria em vão. Saiu “disparado” até ao lado oposto do campo, na direcção da árbitra que actuava com David Santos – dessa poderia receber “troco” verbal.

Também por causa da surdez completa o árbitro fica, em alguns momentos, um pouco para trás – quando a colega apita e David não ouve, precisa de um segundo a mais para entender que o jogo parou. Ou quando um conflito entre jogadores requer boa capacidade comunicacional por parte do árbitro. Ou quando a prevenção de infracções pode e deve ser feita com recurso a presença verbal e não apenas física – e David não tem isso para oferecer. Ou até quando precisa de mostrar valências comunicacionais e posturais que fazem parte da avaliação de desempenho de um árbitro. Nesse prisma avaliativo é difícil enquadrar David Santos.

Como avaliar um árbitro surdo?

O sistema de avaliação de desempenho dos árbitros pressupõe categorias de comunicação e contenção de gestos, por exemplo, nas quais David não consegue, por limitações incontornáveis, cumprir com distinção – a mímica é, muitas vezes, um recurso fundamental para este árbitro.

Um observador de árbitros argumenta ao PÚBLICO que não pode simplesmente escrever, em tábua rasa, que o árbitro não comunica ou que usa os gestos de forma excessiva. Reflecte que ignorar as dificuldades de David é fazer uma avaliação errada e prejudicar os outros árbitros, mas acrescenta: “Avaliá-lo na mesma bitola dos outros também não é justo, porque ele não é igual aos outros. Não quer dizer que como árbitro seja melhor ou pior, mas é evidente que não parte do mesmo patamar e enfrenta dificuldades diferentes. É um compromisso difícil de encontrar”.

Para David, esse compromisso tem sido possível – crê que não é tratado de forma diferente pelos observadores.

Assim sendo, o que falta? Aparentemente, nada. David chega ao pavilhão, equipa-se, entra na quadra, corre, vê, analisa, apita, exibe cartões, ignora insultos, faz cumprir as leis, é avaliado, toma banho, vai para casa e é pago pelo que trabalhou – como qualquer outro. Nessa medida, David até pode precisar da arbitragem, mas a arbitragem – e o desporto em geral – também precisam de David. E de outros Davides.

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