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20 anos depois
O século XX começou em 1905 com o Soviete de Petrogrado e terminou em 1989 com a queda do muro de Berlim. Século curto, foi um tempo intenso de revoluções e contra-revoluções, de guerras mundiais e fascismo, de colonialismo e exterminismo, de acumulação intensa de capital e de aceleração do tempo tecnológico e militar. Nunca o mundo produziu tanto, nunca a população foi tão grande, nunca a miséria foi tão miserável. E nunca houve tantos muros: na Cisjordânia e em Gaza, na fronteira entre os Estados Unidos e o México, na Ásia, em Schengen. Artigo de Francisco Louçã.
Esse século vertiginoso convoca por isso os ajustes de contas: os vencedores estão sempre a reclamar a sua vitória, por medo dos que esmagaram. Vinte anos depois da queda do Muro de Berlim, floresce assim a ideologia contentatória: o comunismo acabou, diz Saramago e repete, com gosto evidente, António Vitorino. Frágil ilusão, contudo, pois continuou a ser possível ser cristão depois da Inquisição, social-democrata depois da votação dos créditos de guerra e mesmo depois do assassinato de Rosa Luxemburgo, e até continuou a ser possível ser economista liberal depois da grande depressão de 1929. Cada experiência trágica tem muitas leituras e nunca ninguém tem a última palavra. Como é possível ser socialista depois da queda da União Soviética e do seu muro, do mesmo modo que é possível – e necessário – ser socialista depois do colapso do subprime e da criminalidade financeira que se tornou deslumbrantemente evidente com a crise de 2008 e 2009. É possível, por convicção.
Porque os julgamentos não bastam, muito menos os julgamentos interessados. É preciso compreender. Julgar é fácil demais: “O mais fácil, tratando-se do que tem conteúdo e uma consistência pura e sólida, é proceder aos julgamentos; já é mais difícil compreender; e o mais difícil de tudo é reunir julgamento e compreensão, e produzir a sua exposição”, escreve Hegel no prefácio da sua “Fenomenologia do Espírito”. Compreender, portanto.
Porque a esquerda só se merecerá se for capaz de compreender, esse é o combate mais difícil. Compreender a derrocada de uma mentira, de um sistema social esgotado no privilégio e na desigualdade, na repressão e na censura, no militarismo e no Gulag. A queda do Muro foi o episódio final de uma agonia perante a tensão social insuportável. Mas também ensina que o socialismo só pode ser o contrário do Muro: liberdade contra a censura, responsabilidade contra o controlo sindical, todos os direitos sociais, incluindo o pluripartidarismo, a liberdade de formar sindicatos ou de fazer greve.
Esse é ainda hoje o debate incontornável: os saudosos do partido despótico não fazem parte do socialismo que luta contra o capitalismo. O Muro não sobrevive agora senão como uma memória, como um símbolo clarificador da contraposição do que deve ser o socialismo se quer ser socialismo e vencer.
“Vinte Anos Depois”, o último livro da saga dos mosqueteiros na pena de Alexandre Dumas, é na literatura uma despedida triste, um fim anunciado, porque só podia acabar como tragédia. Pelo contrário, vinte anos depois, a queda do Muro deve ser lembrada não como uma tragédia mas antes como o inevitável desenrolar de uma história acabada, sem nenhuma saudade do que era insuportável, com toda a compreensão para a acção. Somos, os socialistas de esquerda, mais precisos do que nunca.
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