B de Beber
CP: Vamos passar para o B. é um pouco particular, é sobre a
bebida. Você bebeu e parou de beber. Eu gostaria de saber quando você bebia, o
que era beber? Tinha prazer, ou o quê?
GD: Bebi muito, bebi muito. Parei, bebi muito... Seria preciso
perguntar a outras pessoas que beberam, perguntar aos alcoólatras. Acho que
beber é uma questão de quantidade, por isso não há equivalente com a comida. Há
gulosos, há pessoas... Comer sempre me desagradou, não é para mim, mas a bebida
é uma questão... Entendo que não se bebe qualquer coisa. Quem bebe tem sua
bebida favorita, mas é nesse âmbito que ele entende a quantidade. O que quer
dizer questão de quantidade? Zomba-se muito dos drogados, ou dos alcoólatras,
porque eles sempre dizem: “Eu controlo, paro de beber quando quiser”.
Zombam deles, porque não se entende o que querem dizer. Tenho
lembranças bem claras. Eu via bem isso e acho que quem bebe compreende isso.
Quando se bebe, só quer chegar ao último copo. Beber é, literalmente, fazer
tudo para chegar ao último copo. É isso que interessa.
CP: É sempre o limite?
GD: Será que é o limite? É complicado. Em outros termos, um
alcoólatra é alguém que está sempre parando de beber, ou seja, está sempre no
último copo. O que isto quer dizer? É um pouco como a fórmula de Péguy, que é
tão bela: não é a última Ninfeia que repete a primeira, é a primeira Ninfeia
que repete todas as outras e a última. Pois bem, o primeiro copo repete o
último, é o último que conta. O que quer dizer o último copo para um alcoólatra?
Ele se levanta de manhã, se for um alcoólatra da manhã, há todos os géneros, se
for um alcoólatra da manhã, ele tende para o momento em que chegará ao último
copo. Não é o primeiro, o segundo, o terceiro que o interessa, é muito mais, um
alcoólatra é malandro, esperto. O último copo quer dizer o seguinte: ele
avalia, há uma avaliação, ele avalia o que pode aguentar, sem desabar... Ele
avalia. Varia para cada pessoa. Avalia, portanto, o último copo e todos os
outros serão a sua maneira de passar, e de atingir esse último. E o que quer
dizer o último? Quer dizer: ele não suporta beber mais naquele dia. É o último
que lhe permitirá recomeçar no dia seguinte, porque, se ele for até o último
que excede seu poder, é o último em seu poder, se ele vai além do último em seu
poder para chegar ao último que excede seu poder, ele desmorona, e está
acabado, vai para o hospital, ou tem de mudar de hábito, de agenciamento. De
modo que, quando ele diz: o último copo, não é o último, é o penúltimo, ele
procura o penúltimo. Ele não procura o último copo, procura o penúltimo copo.
Não o último, pois o último o poria fora de seu arranjo, e o penúltimo é o
último antes do recomeço no dia seguinte. O alcoólatra é aquele que diz e não
pára de dizer: vamos... É o que se ouve nos bares, é tão divertida a companhia
de alcoólatras, a gente não se cansa de escutá-los, nos bares quem diz: é o
último, e o último varia para cada um. E o último é o penúltimo.
CP: É também quem diz: amanhã paro.
GD: Amanhã eu paro? Não, ele não diz: amanhã eu paro; diz:
paro hoje para recomeçar amanhã.
CP: Então, já que beber é sempre parar de beber, como se pára
de beber totalmente, já que você parou?
GD: É muito perigoso, me parece que acontece rápido. Michaux
disse tudo, os problemas de droga e os problemas de álcool não estão tão
separados. Há um momento em que isso se torna perigoso demais, porque, aí
também é uma crista, como quando eu dizia "a crista entre a linguagem e o
silêncio", ou a linguagem e a animalidade, é uma crista, é um estreito desfiladeiro.
Tudo bem beber, se drogar, pode-se fazer tudo o que se quer, desde que isso não
o impeça de trabalhar, se for um excitante é normal oferecer algo de seu corpo
em sacrifício. Beber, se drogar são atitudes bem sacrificais. Oferece-se o
corpo em sacrifício.
Porquê? Porque há algo forte demais, que não se poderia
suportar sem o álcool. A questão não é suportar o álcool, é, talvez, o que se
acredita ver, sentir, pensar, e isso faz com que, para poder suportar, para
poder controlar o que se acredita ver, sentir, pensar, se precise de uma ajuda:
álcool, droga, etc. A fronteira é muito simples. Beber, se drogar, tudo isso parece
tornar quase possível algo forte demais, mesmo se se deve pagar depois,
sabe-se, mas em todo caso, está ligado a isto, trabalhar, trabalhar. E é
evidente que quando tudo se inverte, e que beber impede de trabalhar, e a droga
se torna uma maneira de não trabalhar, é o perigo absoluto, não tem mais
interesse, e, ao mesmo tempo, percebe-se, cada vez mais, que quando se pensava
que o álcool ou a droga eram necessários, eles não são necessários.
Talvez se deva passar por isso, para perceber que tudo o que
se pensou fazer graças a eles podia-se fazer sem eles. Admiro muito a maneira
como Michaux diz: agora, tornou-se, tudo isso é... ele pára. Eu tenho menos
mérito, porque parei de beber por razões de respiração, de saúde, etc., mas é
evidente que se deve parar ou se privar disso. A única justificação possível é
se isso ajuda o trabalho. Mesmo se se deve pagar fisicamente depois. Quanto mais
se avança, mais a gente diz a si mesmo que não ajuda o trabalho...
CP: Por um lado, como Michaux, é preciso ter-se drogado,
bebido muito para poder se privar em um estado desses. Por outro lado, você diz:
quando se bebe, isso não deve impedir o trabalho, mas é porque se entreviu algo
que a bebida ajudava a suportar. E esse algo não é a vida. Aí há a questão dos
escritores de que se gosta.
GD: Sim, é a vida.
CP: É a vida?
GD: É algo forte demais na vida, não é algo terrificante, é
algo forte demais, poderoso demais na vida. Acredita-se, de modo um pouco
idiota, que beber vai colocá-lo no nível desse algo mais poderoso. Se pensar em
toda a linhagem dos grandes americanos. De Fitzgerald a... Um dos que mais
admiro é Thomas Wolfe. É uma série de alcoólatras, ao mesmo tempo que é isso o
que lhes permite, os ajuda, provavelmente, a perceber algo grande demais para
eles.
CP: É, mas é também porque eles perceberam algo da potência
da vida, que nem todos podem perceber, porque sentiram algo da potência da
vida.
GD: O álcool não o fará sentir...
CP: ... Que havia uma potência da vida forte demais para
eles, e que só eles podiam perceber.
GD: Certo.
CP: E Lowry também?
GD: Certo. Claro, eles fizeram uma obra e o que foi o álcool
para eles? Eles se arriscaram, arriscaram porque pensaram, com ou sem razão,
que isso os ajudava. Eu tive a sensação de que isso me ajudava a fazer
conceitos, é estranho, a fazer conceitos filosóficos. Ajudava, depois percebi
que já não ajudava, que me punha em perigo, não tinha vontade de trabalhar se
bebesse. Então se deve parar. É simples.
CP: É uma tradição americana, são poucos os escritores
franceses que confessaram sua queda pelo álcool. Além disso, há algo que faz
parte da escrita...
GD: Os escritores franceses não têm a mesma visão de escrita.
Não sei se fui tão marcado pelos americanos, é uma questão de visão, de
vidências, aqui considera-se que a filosofia, a escrita, é uma questão... De
maneira modesta, ver algo, que os outros não vêem, não é esta a concepção
francesa da literatura, mas note, houve também muitos alcoólatras na França.
CP: Mas eles param de escrever, na França. Têm muita
dificuldade, os que conhecemos. Poucos filósofos confessaram sua queda pela
bebida.
GD: Verlaine morava na rua Nollet, aqui ao lado.
CP: Excepto Rimbaud e Verlaine.
GD: Aperta o coração, pois quando pego a rua Nollet, digo:
era este o percurso de Verlaine para ir beber seu absinto. Parece que morou em
um apartamento horrível.
CP: Os poetas e o álcool, conhecemos mais.
GD: Um dos maiores poetas franceses, que andava pela rua
Nollet. Uma maravilha.
CP: Na casa dos amigos?
GD: Provavelmente.
CP: Enfim, os poetas, sabemos que houve mais etílicos. Bem,
terminamos com o álcool.
GD: Puxa, estamos indo rápido!
CP: Vamos passar ao C. O C é vasto.
(vídeo)
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