Abecedário de Gilles Deleuze
A cláusula: (por Claire Parnet [1994]:)
'Gilles Deleuze sempre se negou a aparecer na TV. Mas
atualmente ele acha sua doença tão parecida com a "petite mort", da
canção de Alain Souchon, que mudou de opinião. Mantive, porém, sua
declaração ["a cláusula"], feita em 1988, no início da filmagem:
Gilles
Deleuze [1988]: Você escolheu um abecedário, me preveniu sobre os
temas, não conheço bem as questões, mas pude refletir um pouco sobre os
temas... Responder a uma questão, sem ter refletido, é para mim algo
inconcebível. O que nos salva é a cláusula. A cláusula é que isso só
será utilizado, se for utilizável, só será utilizado após minha morte.
Então,
já me sinto reduzido ao estado de puro arquivo de Pierre-André Boutang,
de folha de papel, e isso me anima muito, me consola muito, e quase no
estado de puro espírito, eu falo, falo ...após minha morte... e, como se
sabe, um puro espírito, basta ter feito a experiência da mesa girante
[do espiritismo], para saber que um puro espírito não dá respostas muito
profundas, nem muito inteligentes, é um pouco vago, então está tudo
certo, tudo certo para mim, vamos começar: A, B, C, D... o que você
quiser': O Abecedário de Gilles Deleuze (vídeo)
Muito giro para ver com tempo e calma, faz pensar.
A de Animal
B de Beber
C de Cultura
D de Desejo
E de Enfance [Infância]
F de Fidelidade
G de Gauche [Esquerda]
H de História da Filosofia
I de Idéia
J de Joie [Alegria]
K de Kant
L de Literatura
M de Maladie [Doença]
N de Neurologia
O de Ópera
P de Professor
Q de Questão
R de Resistência
S de Style [Estilo]
T de Tênis
U de Uno
V de Viagem
W de Wittgenstein
X de Desconhecido
Y de Indizível
Z de Ziguezague
Muito giro para ver com tempo e calma, faz pensar.
A de Animal
B de Beber
C de Cultura
D de Desejo
E de Enfance [Infância]
F de Fidelidade
G de Gauche [Esquerda]
H de História da Filosofia
I de Idéia
J de Joie [Alegria]
K de Kant
L de Literatura
M de Maladie [Doença]
N de Neurologia
O de Ópera
P de Professor
Q de Questão
R de Resistência
S de Style [Estilo]
T de Tênis
U de Uno
V de Viagem
W de Wittgenstein
X de Desconhecido
Y de Indizível
Z de Ziguezague
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA:
de Animal
Claire Parnet: Então
começamos com A. A é Animal. Poderíamos considerar sua a frase de W. C.
Fields: "Um homem que não gosta nem de crianças, nem de animais não pode
ser totalmente ruim". Por enquanto, deixemos de lado as crianças, sei
que você não gosta muito de animais domésticos, e nem prefere, como
Baudelaire ou Cocteau, os gatos aos cachorros. Em compensação, você tem
um bestiário, ao longo de sua obra, que é bastante repugnante, ou seja,
além das feras, que são animais nobres, você fala muito do carrapato, do
piolho, de alguns pequenos animais como esses, repugnantes, e além
disso, que os animais lhe serviram muito desde O anti-Édipo. Um conceito
importante em sua obra é o devir-animal. Qual é, então, sua relação com
os animais?
Gilles
Deleuze: Os animais não são... O que você disse sobre minha relação com
os animais domésticos, não é o animal doméstico, domado, selvagem, o
que me preocupa. O problema é que os gatos, os cachorros, são animais
familiares, familiais, e é verdade que desses animais domados,
domésticos, eu não gosto. Em compensação, gosto de animais domésticos
não-familiares, não-familiais. Gosto, pois sou sensível a algo neles.
Aconteceu comigo o que acontece em muitas famílias. Não tinha gato, nem
cachorro. Um de meus filhos com Fanny trouxe, um dia, um gato que não
era maior que sua mãozinha. Ele o tinha encontrado, estávamos no campo,
em um palheiro, não sei bem onde, e a partir desse momento fatal, sempre
tive um gato em casa. O que me incomoda nesses bichos? Bem, não foi um
calvário, eu suporto, o que me incomoda... não gosto dos roçadores, um
gato passa seu tempo se roçando, roçando em você, não gosto disso. Um
cachorro é diferente, o que reprovo, fundamentalmente, no cachorro, é
que ele late. O latido me parece ser o grito mais estúpido. E há muitos
gritos na Natureza! Há uma variedade de gritos, mas o latido é,
realmente, a vergonha do reino animal. Suporto, em compensação, suporto
mais, se não durar muito, o grito, não sei como se diz, o uivo para a
lua, um cachorro que uiva para a lua, eu suporto mais.
CP: O uivo para a morte.
GD:
Para a morte, não sei, suporto mais que o latido. E, quando soube que
cachorros e gatos fraudavam a previdência social, minha antipatia
aumentou. Ao mesmo tempo, o que digo é bem bobo, porque as pessoas que
gostam verdadeiramente de gatos e cachorros têm uma relação com eles que
não é humana. Por exemplo, as crianças, têm uma relação com eles que
não é humana, que é uma espécie de relação infantil ou... o importante é
ter uma relação animal com o animal. O que é ter uma relação animal com
o animal? Não é falar com ele... Em todo caso, o que não suporto é a
relação humana com o animal. Sei o que digo porque moro em uma rua um
pouco deserta e as pessoas levam seus cachorros para passear. O que ouço
de minha janela é espantoso. É espantoso como as pessoas falam com seus
bichos. Isso inclui a própria psicanálise. A psicanálise está tão
fixada nos animais familiares ou familiais, nos animais da família, que
qualquer tema animal... em um sonho, por exemplo, é interpretado pela
psicanálise como uma imagem do pai, da mãe ou do filho, ou seja, o
animal como membro da família. Acho isso odioso, não suporto. Devemos
pensar em duas obras primas de Douanier Rousseau: o cachorro na
carrocinha que é realmente o avô, o avô em estado puro, e depois o
cavalo de guerra, que é um bicho de verdade. A questão é: que relação
você tem com o animal? Se você tem uma relação animal com o animal...
Mas geralmente as pessoas que gostam dos animais não têm uma relação
humana com eles, mas uma relação animal. Isso é muito bonito, mesmo os
caçadores, e não gosto de caçadores, enfim, mesmo eles têm uma relação
surpreendente com o animal. Acho que você me perguntou, também, sobre
outros animais. É verdade que sou fascinado por bichos como as aranhas,
os carrapatos, os piolhos. É tão importante quanto os cachorros e gatos.
E é também uma relação com animais, alguém que tem carrapatos, piolhos.
O que quer dizer isto? São relações bem ativas com os animais. O que me
fascina no animal? Meu ódio por certos animais é nutrido por meu
fascínio por muitos animais. Se tento me dizer, vagamente, o que me toca
em um animal, a primeira coisa é que todo animal tem um mundo. É
curioso, pois muita gente, muitos humanos não têm mundo. Vivem a vida de
todo mundo, ou seja, de qualquer um, de qualquer coisa, os animais têm
mundos. Um mundo animal, às vezes, é extraordinariamente restrito e é
isso que emociona. Os animais reagem a muito pouca coisa. Há toda
espécie de coisas...
Essa
história, esse primeiro traço do animal é a existência de mundos
animais específicos, particulares, e talvez seja a pobreza desses
mundos, a redução, o caráter reduzido desses mundos que me impressiona
muito. Por exemplo, falamos, há pouco, de animais como o carrapato. O
carrapato responde ou reage a três coisas, três excitantes, um só ponto,
em uma natureza imensa, três excitantes, um ponto, é só. Ele tende para
a extremidade de um galho de árvore, atraído pela luz, ele pode passar
anos, no alto desse galho, sem comer, sem nada, completamente amorfo,
ele espera que um ruminante, um herbívoro, um bicho passe sob o galho, e
então ele se deixa cair, aí é uma espécie de excitante olfativo. O
carrapato sente o cheiro do bicho que passa sob o galho, este é o
segundo excitante, luz, e depois odor, e então, quando ele cai nas
costas do pobre bicho, ele procura a região com menos pêlos, um
excitante tátil, e se mete sob a pele. Ao resto, se se pode dizer, ele
não dá a mínima. Em uma natureza formigante, ele extrai, seleciona três
coisas.
CP: É este seu sonho de vida? É isso que lhe interessa nos animais?
GD: É isso que faz um mundo.
CP: Daí sua relação animal-escrita. O escritor, para você, é, também, alguém que tem um mundo?
GD:
Não sei, porque há outros aspectos, não basta ter um mundo para ser um
animal. O que me fascina completamente são as questões de território e
acho que Félix e eu criamos um conceito que se pode dizer que é
filosófico, com a idéia de território. Os animais de território, há
animais sem território, mas os animais de território são prodigiosos,
porque constituir um território, para mim, é quase o nascimento da arte.
Quando vemos como um animal marca seu território, todo mundo sabe, todo
mundo invoca sempre... as histórias de glândulas anais, de urina, com
as quais eles marcam as fronteiras de seu território. O que intervém na
marcação é, também, uma série de posturas, por exemplo, se abaixar, se
levantar. Uma série de cores, os macacos, por exemplo, as cores das
nádegas dos macacos, que eles manifestam na fronteira do território...
Cor, canto, postura, são as três determinações da arte, quero dizer, a
cor, as linhas, as posturas animais são, às vezes, verdadeiras linhas.
Cor, linha, canto. É a arte em estado puro. E, então, eu me digo, quando
eles saem de seu território ou quando voltam para ele, seu
comportamento... O território é o domínio do ter. É curioso que seja no
ter, isto é, minhas propriedades, minhas propriedades à maneira de
Beckett ou de Michaux. O território são as propriedades do animal, e
sair do território é se aventurar. Há bichos que reconhecem seu cônjuge,
o reconhecem no território, mas não fora dele.
CP: Quais?
GD:
É uma maravilha. Não sei mais que pássaro, tem de acreditar em mim. E
então, com Félix, saio do animal, coloco, de imediato, um problema
filosófico, porque... misturamos um pouco de tudo no abecedário. Digo
para mim, criticam os filósofos por criarem palavras bárbaras, mas eu,
ponha-se no meu lugar, por determinadas razões, faço questão de refletir
sobre essa noção de território. E o território só vale em relação a um
movimento através do qual se sai dele. É preciso reunir isso. Preciso de
uma palavra, aparentemente bárbara. Então, Félix e eu construímos um
conceito de que gosto muito, o de desterritorialização. Sobre isso nos
dizem: é uma palavra dura, e o que quer dizer, qual a necessidade disso?
Aqui, um conceito filosófico só pode ser designado por uma palavra que
ainda não existe. Mesmo se se descobre, depois, um equivalente em outras
línguas. Por exemplo, depois percebi que em Melville, sempre aparecia a
palavra: outlandish, e outlandish, pronuncio mal, você corrige,
outlandish é, exatamente, o desterritorializado. Palavra por palavra.
Penso que, para a filosofia, antes de voltar aos animais, para a
filosofia é surpreendente. Precisamos, às vezes, inventar uma palavra
bárbara para dar conta de uma noção com pretensão nova. A noção com
pretensão nova é que não há território sem um vetor de saída do
território e não há saída do território, ou seja, desterritorialização,
sem, ao mesmo tempo, um esforço para se reterritorializar em outra
parte. Tudo isso acontece nos animais. É isso que me fascina, todo o
domínio dos signos. Os animais emitem signos, não param de emitir
signos, produzem signos no duplo sentido: reagem a signos, por exemplo,
uma aranha: tudo o que toca sua tela, ela reage a qualquer coisa, ela
reage a signos. E eles produzem signos, por exemplo, os famosos
signos... Isso é um signo de lobo? É um lobo ou outra coisa? Admiro
muito quem sabe reconhecer, como os verdadeiros caçadores, não os de
sociedades de caça, mas os que sabem reconhecer o animal que passou por
ali, aí eles são animais, têm, com o animal, uma relação animal. É isso
ter uma relação animal com o animal. É formidável.
CP: É essa emissão de signos, essa recepção de signos que aproxima o animal da escrita e do escritor?
GD: É. Se me perguntassem o que é um animal, eu responderia: é o ser à espreita, um ser, fundamentalmente, à espreita.
CP: Como o escritor?
GD:
O escritor está à espreita, o filósofo está à espreita. É evidente que
estamos à espreita. O animal é... observe as orelhas de um animal, ele
não faz nada sem estar à espreita, nunca está tranqüilo.
Ele
come, deve vigiar se não há alguém atrás dele, se acontece algo atrás
dele, a seu lado. É terrível essa existência à espreita. Você faz a
aproximação entre o escritor e o animal.
CP: Você a fez antes de mim.
GD:
É verdade, enfim... Seria preciso dizer que, no limite, um escritor
escreve para os leitores, ou seja, "para uso de", "dirigido a". Um
escritor escreve "para uso dos leitores". Mas o escritor também escreve
pelos não-leitores, ou seja, "no lugar de" e não "para uso de".
Escreve-se pois "para uso de" e "no lugar de". Artaud escreveu páginas
que todo mundo conhece. "Escrevo pelos analfabetos, pelos idiotas".
Faulkner escreve pelos idiotas. Ou seja, não para os idiotas, os
analfabetos, para que os idiotas, os analfabetos o leiam, mas no lugar
dos analfabetos, dos idiotas. "Escrevo no lugar dos selvagens, escrevo
no lugar dos bichos". O que isso quer dizer? Por que se diz uma coisa
dessas? "Escrevo no lugar dos analfabetos, dos idiotas, dos bichos". É
isso que se faz, literalmente, quando se escreve.
Quando se escreve, não se trata de história privada. São realmente uns imbecis. É a abominação, a mediocridade literária de todos as épocas, mas, em particular, atualmente, que faz com que se acredite que para fazer um romance, basta uma historinha privada, sua historinha privada, sua avó que morreu de câncer, sua história de amor, e então se faz um romance. É uma vergonha dizer coisas desse tipo. Escrever não é assunto privado de alguém. É se lançar, realmente, em uma história universal e seja o romance ou a filosofia, e o que isso quer dizer...
Quando se escreve, não se trata de história privada. São realmente uns imbecis. É a abominação, a mediocridade literária de todos as épocas, mas, em particular, atualmente, que faz com que se acredite que para fazer um romance, basta uma historinha privada, sua historinha privada, sua avó que morreu de câncer, sua história de amor, e então se faz um romance. É uma vergonha dizer coisas desse tipo. Escrever não é assunto privado de alguém. É se lançar, realmente, em uma história universal e seja o romance ou a filosofia, e o que isso quer dizer...
CP:
É escrever "para" e "pelo", ou seja, "para uso de" e "no lugar de". É o
que disse em Mil platôs, sobre Chandos e Hofmannsthal: "O escritor é um
bruxo, pois vive o animal como a única população frente à qual é
responsável".
GD: É
isso. É por uma razão simples, acredito que seja bem simples. Não é uma
declaração literária a que você leu de Hofmannsthal. É outra coisa.
Escrever é, necessariamente, forçar a linguagem, a sintaxe, porque a
linguagem é a sintaxe, forçar a sintaxe até um certo limite, limite que
se pode exprimir de várias maneiras. É tanto o limite que separa a
linguagem do silêncio, quanto o limite que separa a linguagem da música,
que separa a linguagem de algo que seria... o piar, o piar doloroso.
CP: Mas de jeito algum o latido?
GD:
Não, o latido não. E, quem sabe, poderia haver um escritor que
conseguisse. O piar doloroso, todos dizem, bem, sim, Kafka. Kafka é A
metamorfose, o gerente que grita: "Ouviram, parece um animal". Piar
doloroso de Gregor ou o povo dos camundongos, Kafka escreveu pelo povo
dos camundongos, pelo povo dos ratos que morrem. Não são os homens que
sabem morrer, são os bichos, e os homens, quando morrem, morrem como
bichos. Aí voltamos ao gato e, com muito respeito, tive, entre os vários
gatos que se sucederam aqui, um gatinho que morreu logo, ou seja, vi o
que muita gente também viu, como um bicho procura um canto para morrer.
Há um território para a morte também, há uma procura do território da
morte, onde se pode morrer. E esse gatinho que tentava se enfiar em um
canto, como se para ele fosse o lugar certo para morrer. Nesse sentido,
se o escritor é alguém que força a linguagem até um limite, limite que
separa a linguagem da animalidade, do grito, do canto, deve-se então
dizer que o escritor é responsável pelos animais que morrem, e ser
responsável pelos animais que morrem, responder por eles... escrever não
para eles, não vou escrever para meu gato, meu cachorro. Mas escrever
no lugar dos animais que morrem é levar a linguagem a esse limite. Não
há literatura que não leve a linguagem a esse limite que separa o homem
do animal. Deve-se estar nesse limite. Mesmo quando se faz filosofia.
Fica-se no limite que separa o pensamento do não-pensamento. Deve-se
estar sempre no limite que o separa da animalidade, mas de modo que não
se fique separado dela. Há uma inumanidade própria ao corpo humano, e ao
espírito humano, há relações animais com o animal. Seria bom se
terminássemos com o A.
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