CP: H de História da Filosofia.
Costumam dizer que, em sua obra, há uma 1ª etapa dedicada à História da
Filosofia. A partir de 1952, escreveu um estudo sobre David Hume. Depois,
seguiram-se livros sobre Nietzsche, Kant, Bergson e Spinoza. Quem não o
conhecia bem, ficou muito impressionado com Lógica do sentido, Diferença e
repetição, O anti-Édipo, Mil platôs. Como se houvesse um Mr. Hyde adormecido no
Dr. Jekyll. Quando todos explicavam Marx, você mergulhou em Nietzsche, e quando
todos liam Reich, você se voltou para Spinoza, com a famosa pergunta: "O
que pode um corpo?". Hoje, em 1988, você volta a Leibniz. Do que gostava
ou ainda gosta na História da Filosofia?
GD: É complicado. Porque isso
envolve a própria Filosofia. Suponho que muita gente ache que a Filosofia é uma
coisa muito abstrata e só para os "entendidos". Tenho tão viva em mim
a ideia de que a Filosofia não tem nada a ver com "entendidos", de
que não é uma especialidade, ou o é, mas só na medida em que a pintura ou a
música também o são, que procuro ver esta questão de outra forma. Quando acham
que a Filosofia é abstracta, a história da Filosofia passa a ser abstracta em
dobro, já que ela nem consiste mais em falar de ideias abstratas, mas em formar
ideias abstratas a partir de ideias abstratas. Para mim, a história da
Filosofia é uma coisa muito diferente. E, para isso, volto a falar da pintura.
Nas cartas de Van Gogh, encontram-se discussões sobre retrato ou paisagem.
"Quero fazer retratos. Será preciso voltar ao retrato?" Eles davam
muita importância em suas conversas e cartas. Retrato e paisagem não são a
mesma coisa, não são o mesmo problema. Para mim, a história da Filosofia é,
como na Pintura, uma espécie de arte do retrato. Faz-se o retrato de um
filósofo. Mas é o retrato filosófico de um filósofo, uma espécie de retrato
mediúnico, ou seja, um retrato mental, espiritual. É um retrato espiritual.
Tanto que é uma atividade que faz totalmente parte da própria Filosofia, assim
como o retrato faz parte da Pintura. O simples fato de eu invocar pintores que
me levam a... Se eu ainda volto a pintores como Van Gogh ou Gauguin, é porque
há uma coisa que me toca profundamente neles: é esta espécie de enorme
respeito, de medo e pânico... Não só respeito, mas medo e pânico diante da cor,
diante de ter de abordar a cor. É particularmente agradável que estes pintores
que citei, para citar apenas estes, sejam dois dos maiores coloristas que já
existiram. Ao revermos a história de
suas obras, para eles, a abordagem da cor se fazia com tremores. Eles tinham
medo! A cada começo de uma obra deles, usavam cores mortas. Cores... Sim, cores
de terra, sem nenhum brilho. Por quê? Porque tinham o gosto e não ousavam
abordar a cor. O que há de mais comovente do que isso? Na verdade, eles não se
consideravam ainda dignos, não se consideravam capazes de abordar a cor, ou
seja, de fazer pintura de fato. Foram necessários anos e anos para que eles
ousassem abordar a cor. Mas quando sentem que são capazes de abordar a cor,
obtêm o resultado que todos conhecem. Quando vemos a que eles chegaram, temos
de pensar neste imenso respeito, nesta imensa lentidão para abordar isto. A cor
para um pintor é algo que pode levar à insensatez, à loucura. Portanto, são
necessários muitos anos, antes de ousar tocar em algo assim. Não é que eu seja
particularmente modesto, mas eu acho que seria muito chocante se existissem
filósofos que dissessem assim: "Vou ingressar na Filosofia, e vou fazer a
minha filosofia. Tenho a minha filosofia". São falas de um retardado!
"Fazer a sua filosofia!" Porque a Filosofia é como a cor. Antes de
entrar na Filosofia, é preciso tanta, mas tanta precaução! Antes de conquistar
a "cor" filosófica, que é o conceito. Antes de saber e de conseguir
criar conceitos é preciso tanto trabalho! Eu acho que a história da Filosofia é esta lenta modéstia, é preciso
fazer retratos por muito tempo. Tem de fazer retratos. É como se um romancista
dissesse: "Eu escrevo romances, mas, para não comprometer a minha
inspiração, eu nunca leio romances. Dostoiévski? Não conheço". Já ouvi um
jovem romancista dizer essas coisas espantosas. Seria como dizer que não é
preciso trabalhar. Como em tudo que se faz é preciso trabalhar muito, antes de
abordar alguma coisa. Acho que a
Filosofia tem um papel que não é apenas preparatório, mas que vale por si
mesmo. É a arte do retrato na medida em que nos permite abordar alguma
coisa. E aí é que vem o mistério. É preciso explicar melhor. Você teria de me
obrigar a explicar através de alguma pergunta. Ou eu posso continuar assim... O
que acontece quando se faz história da Filosofia? Tem outra coisa a me
perguntar a este respeito?
CP: Sabemos qual é a utilidade da
história da Filosofia para você. Mas, para as pessoas de modo geral? Já que
você não quer falar da especialização da Filosofia e que a Filosofia se dirige
também aos não-filósofos.
GD: Isso me parece muito simples.
Só se pode entender o que é a filosofia,
a que ponto ela não é uma coisa abstracta, da mesma forma que um quadro ou uma
obra musical não são absolutamente abstractos, só através da história da
Filosofia, com a condição de concebê-la correctamente. Afinal, o que é... Há
uma coisa que me parece certa: um filósofo não é uma pessoa que contempla e
também não é alguém que reflete. Um filósofo é alguém que cria. Só que ele cria
um tipo de coisa muito especial, ele cria conceitos. Os conceitos não nascem
prontos, não andam pelo céu, não são estrelas, não são contemplados. É
preciso criá-los, fabricá-los. Haveria mil perguntas só neste ponto. Estamos
perdidos, pois são tantas questões. Para que serve? Por que criar conceitos? O
que é um conceito? Mas vamos deixar isso para lá por enquanto. Por exemplo, se
eu criar um livro sobre Platão. As pessoas sabem que Platão criou um conceito
que não existia antes dele e que é geralmente traduzido como a "Ideia".
Ideia com um I maiúsculo. E o que Platão chama de Ideia é bem diferente do que
outro filósofo chama de Ideia. É um conceito platónico, tanto que se alguém
emprega a palavra Ideia em um sentido parecido, responderão: "É um
filósofo platónico". Mas concretamente o que é? Não se deve perguntar de
outra forma, ou é melhor não fazer Filosofia. Tem de se perguntar como se se
tratasse de um cachorro! O que é uma Ideia? Eu posso definir um cachorro. E uma
Ideia para Platão? Neste momento, já estou fazendo história da Filosofia. Eu
tentarei explicar às pessoas, é essa a tarefa de um professor... Acho que o que
ele chama de "Ideia" é uma coisa que não seria outra coisa. Ou seja,
que seria apenas o que ela é. Isso também pode parecer abstrato. Há pouco,
dizia que não se deve ser abstrato. E algo que só é o que ele é, é abstrato.
Então, vamos pegar um caso que não seja de Platão. Uma mãe. Uma mamãe. É uma
mãe, mas ela não é apenas uma mãe. Por exemplo, ela é esposa e ela também é
filha de uma mãe. Suponhamos uma mãe que seja apenas mãe. Pouco importa se isso
existe ou não. Por exemplo, será que a Virgem Maria, que Platão não conhecia,
era uma mãe que só era mãe? Mas pouco importa se isso existe ou não? Uma mãe
que não seria outra coisa além de mãe, que não seria filha de outra mãe, é isso
que devemos chamar de "ideia de mãe". Uma coisa que é só o que ela é.
É o que Platão quis dizer quando disse: "Só a Justiça é justa".
Porque só a Justiça não é outra coisa além de justa. A gente vê que, no fundo,
é muito simples. Claro que Platão não parou só nisso, mas seu ponto de partida
foi: "Suponham-se tais entidades que sejam apenas o que elas são, iremos
chamá-las de Ideias". Portanto, ele criou um verdadeiro conceito, este
conceito não existia antes. A ideia da coisa pura. É a pureza que define a ideia.
Mas por que isso parece abstrato? Por quê? Se nos entregamos à leitura de
Platão é por aí que tudo se torna tão concreto! Ele não diz isso por acaso, não
criou este conceito de Ideia por acaso. Ele se encontra em uma determinada
situação em que, aconteça o que acontecer, em uma situação muito concreta, o
que quer que aconteça ou o que quer que seja dado, há pretendentes. Há pessoas
que dizem: "Para tal coisa, eu sou o melhor". Por exemplo, ele dá uma
definição do político. E ele diz: "A primeira definição do político, como ponto
de partida, seria o pastor dos homens". É aquele que cuida dos homens.
Mas aí, chega um monte de gente dizendo: "Então, eu sou o político. Eu sou
o pastor dos homens". Ou seja, o comerciante pode ter dito isso, o pastor
que alimenta, o médico que trata, todos eles podem dizer: "Eu sou o
verdadeiro pastor". Em outras palavras, há rivais. Agora, está começando a
ficar mais concreto. Eu digo: um filósofo cria conceitos. Por exemplo, a Ideia,
a coisa enquanto pura. O leitor não entende bem do que se trata, nem a
necessidade de criar um conceito assim. Mas se ele continua ou reflete sobre a
leitura, ele percebe que é pelo seguinte motivo: há uma série de rivais que
pretendem esta coisa, são pretendentes e que o problema platoniano não tem nada
a ver com o que é a Ideia, — do contrário, seria abstrato — mas é como
selecionar os pretendentes, como descobrir em meio aos pretendentes qual deles
é o bom. E é a Ideia, a coisa em seu estado puro, que permitirá esta seleção e
selecionará aquele que mais se aproxima. Isso nos permite avançar um pouco,
pois eu diria que todo conceito — por exemplo, o de Ideia — remete a um
problema. Neste caso, o problema é como selecionar os pretendentes. Quando se
faz Filosofia de forma abstrata, nem se percebe o problema. Mas quando se
atinge o problema, por que ele não é dito pelo filósofo? Ele está bem presente
em sua obra, está escancarado, de certa forma. Não se pode fazer tudo de uma
vez. O filósofo já expôs os conceitos que está criando. Ele não pode, além
disso, expor os problemas que os seus conceitos... ou, pelo menos, só se podem
encontrar estes problemas através dos conceitos que criou. E se não encontrou o
problema ao qual responde um conceito, tudo é abstrato. Se encontrou o
problema, tudo vira concreto. É por isso que, em Platão, há constantemente
estes pretendentes, estes rivais! Está ficando cada vez mais óbvio. Por que é
que isso ocorre na cidade grega? Por que é que foi Platão quem inventou este
problema? O problema é como selecionar os pretendentes e o conceito... a
filosofia é isso: problema e conceito. O conceito é a Ideia, que deveria dar os
meios para selecionar os pretendentes. Não importa como. Por que este problema,
este conceito, se formou em um meio grego?
É que isso começa com os gregos,
é um problema tipicamente grego, é problema da cidade, e da cidade democrática,
mesmo se Platão não aceita isso. É um problema da cidade democrática. É em uma
cidade democrática que, por exemplo, uma magistratura é objeto de pretensões.
Há pretendentes, pretendo determinada função. Em uma formação imperial, como
há, na época grega, em uma formação imperial, há funcionários nomeados pelo
grande imperador. Não há essa rivalidade. A cidade ateniense é uma rivalidade
dos pretendentes. Já com Ulisses, os pretendentes de Penélope. Há todo um meio
que se pode chamar de "problema grego". É uma civilização... onde o
enfrentamento dos rivais aparece sempre, por isso eles inventam a ginástica,
inventam os Jogos Olímpicos. Inventam, são processualistas, ninguém é tão
processualista quanto um grego, mas o procedimento é a mesma coisa, os
processos são os pretendentes. Entende? A filosofia... Haverá também
pretendentes, a luta de Platão contra os sofistas. Segundo ele, os sofistas são
pretendentes a algo a que não têm direito. O que vai definir o direito ou o
não-direito de um pretendente? É um problema muito... é tão divertido quanto um
romance. Conhecemos grandes romances onde há pretendentes que se enfrentam
diante de um tribunal. É outra coisa. Mas, na filosofia, há os dois: a criação
de um conceito e esta criação se faz em função de um problema. Se não se achou
o problema, não se compreende a filosofia, e ela permanece abstrata. Dou um
exemplo, as pessoas, em geral, não vêem a que problema isso responde. Não vêem
os problemas, pois eles são um pouco ditos, um pouco escondidos, e fazer a
história da filosofia é restaurar esses problemas e assim descobrir a novidade
dos conceitos. A má história da filosofia enfileira os conceitos como se fossem
óbvios, como se não fossem criados, e há uma ignorância total dos problemas aos
quais... Dou um último exemplo rápido. Dou outro exemplo que não tem nada a
ver, só para diversificar.
Muito tempo depois, há um
filósofo chamado Leibniz, que faz e inventa um conceito bem extraordinário, a
que chamará de "mônada", e escolhe uma palavra técnica, complicada:
"mônada".
E, nos conceitos, há sempre algo
um pouco louco... Essa mãe que só seria mãe, em outro caso, a idéia pura. Há
algo um pouco louco. Pois bem, a mônada leibniziana designa um sujeito, alguém,
você ou eu, enquanto alguém que exprime a totalidade do mundo. E ao exprimir a
totalidade do mundo, ela só exprime, claramente, uma pequena região do mundo:
seu território. Já vimos, já falamos do território. Seu território, ou o que
Leibniz chama seu "departamento". Portanto, uma unidade subjetiva que
exprime o mundo inteiro, mas só exprime claramente uma região, um departamento
do mundo, é o que ele chama uma mônada. Aí também é um conceito, ele o cria,
esse conceito não existia antes dele, pergunta-se: mas por quê? Porque ele o
cria, é muito bonito, mas por que fazê-lo, por que dizer isso e não outra
coisa? É preciso encontrar o problema, não que ele o esconda, mas se não o
procuramos um pouco, não o encontraremos. É esse o charme de ler filosofia. Tem
tanto charme e é tão divertido quanto ler um romance, ou olhar quadros. É
prodigioso. O que percebemos quando lemos? Ele não criou o conceito de mônada
por prazer, mas por outras razões, ele coloca um problema, a saber, que tudo no
mundo só existe dobrado. Por isso escrevi um livro sobre ele que se chama A dobra.
Ele vive o mundo como um conjunto de coisas dobradas umas nas outras. Podemos
recuar: por que ele vive o mundo dessa maneira? O que se passa? Como para
Platão, talvez a resposta seja: na época, será que as coisas se dobravam mais
do que agora? Não temos tempo! O que conta é essa idéia de um mundo dobrado, e
tudo é dobra de dobra, nunca se chega a algo completamente desdobrado. A
matéria é feita de redobras sobre si mesma, e as coisas do espírito, as
percepções, os sentimentos são dobrados na alma. É precisamente porque as
percepções, os sentimentos, as idéias estão dobrados em uma alma, que ele
constrói esse conceito de uma alma que exprime o mundo inteiro, ou seja, no
qual o mundo inteiro se encontra dobrado. Podemos quase dizer: o que é um mau
filósofo e o que é um grande filósofo? Um mau filósofo é alguém que não inventa
conceitos, e se serve de idéias prontas, emite opiniões. E aí ele não faz
filosofia, ele diz: "É isso o que penso". Conhecemos muitos, ainda
hoje, mas em todos os tempos houve opiniões. Ele não inventa conceito, não
coloca, no verdadeiro sentido da palavra problema, nenhum problema. Fazer
história da filosofia é um longo aprendizado, em que se aprende, em que se é
aprendiz, nesse duplo campo: a constituição dos problemas, a criação dos
conceitos. O que é que mata, o que faz com que o pensamento possa ser idiota,
débil, etc.? As pessoas falam, mas nunca se sabe de que problema elas falam.
Não só não criam conceitos, elas emitem opiniões, mas além disso, nunca se sabe
de que problema elas falam. Ou seja, conhecemos, a rigor, as questões, mas se
digo: "Deus existe?", não é um problema. Não disse o problema, onde
ele está? Por que coloco tal questão? Que problema está por detrás disso? As
pessoas querem colocar a questão: "acredito ou não em Deus?" Mas
ninguém liga se acreditam ou não em Deus, o que conta é: por que dizem isso, a
que problema isso responde? E que conceito de Deus elas vão fabricar. Se você
não tiver nem conceito nem problema, você fica na besteira, não faz filosofia. Isso
mostra o quanto a filosofia é divertida, e a história da filosofia, já que é
isso fazer história da filosofia! Não é muito diferente do que tem de fazer
quando está em frente a um quadro ou uma obra musical.
CP: Voltamos a Gauguin e Van
Gogh, já que evocou seus medos antes de abordar a cor. O que aconteceu quando
você passou da história da filosofia para sua própria filosofia?
GD: Aconteceu o seguinte:
provavelmente a história da filosofia tinha me ensinado coisas, ou seja, me
sentia mais capaz de abordar o que é a cor em filosofia. Mas por que isso se
coloca? Por que a filosofia não pára? Por que não pára, por que há ainda
filosofia hoje? Porque sempre há lugar para criar conceitos. É a publicidade
que se apodera dessa noção de conceito. Ela cria conceitos, com os
computadores. Há toda uma linguagem que foi roubada da filosofia.
CP: A comunicação.
GD: A comunicação. Deve-se ser
criativo, criar conceitos. Mas o que chamam "conceito",
"criar" é tão cómico, que não há como insistir. Continua a ser tarefa
da filosofia. Nunca me senti tocado por pessoas que dizem: "a morte da
filosofia", "ultrapassar a filosofia", são filósofos que dizem
coisas tão complicadas. Isso nunca me disse respeito porque me pergunto:
"O que isso quer dizer?" Enquanto houver necessidade de criar
conceitos, haverá filosofia, é esta sua definição. Os conceitos não estão
prontos, é preciso criá-los. E os criamos em função de problemas. Os problemas
evoluem. Pode-se, é claro, ser platónico, ser leibniziano, ainda hoje, em 1989,
pode-se tudo isso, pode-se ser kantiano. O que significa isto? Quer dizer que
se estima que alguns problemas, não todos, colocados por Platão continuam
válidos, com certas transformações, então se é platónico, e se utilizam
conceitos platónicos. Ainda que hoje se coloquem problemas de outra natureza,
não há caso em que não haja um ou vários grandes filósofos que tenham algo a
nos dizer sobre os problemas transformados de hoje. Mas fazer filosofia é criar
novos conceitos em função dos problemas que se colocam hoje. O último aspecto
dessa longa questão seria, é evidente: bem, mas o que é a evolução dos
problemas? O que a assegura? Posso sempre dizer: forças históricas, sociais.
Sim, claro, mas há algo mais profundo. É misterioso. E não teríamos tempo, mas
creio em uma espécie de devir do pensamento, de evolução do pensamento que faz
com que não apenas não coloquemos os mesmos problemas, mas com que não os
coloquemos do mesmo modo. Um problema pode ser colocado de vários modos
sucessivos, e há um apelo urgente, como uma grande corrente de ar, que faz
apelo à necessidade de sempre criar, recriar novos conceitos. Há uma história
do pensamento que não se reduz à influência sociológica ou... Há um devir do
pensamento, que é algo misterioso, que seria preciso definir, que faz com que,
talvez, não se pense hoje da mesma maneira que há cem anos. Processos de
pensamento, elipses de pensamento, o pensamento tem sua história. Há uma
história do pensamento puro. Fazer filosofia, para mim, é exatamente isso. A
filosofia só teve, sempre, uma função. Ela não precisa ser ultrapassada, pois
tem sua função. Queria dizer alguma coisa?
CP: Como um problema evolui
através dos tempos?
GD: Não sei. Deve variar.
CP: Já que o pensamento evolui...
GD: Deve variar conforme cada
caso. No século 17, na maioria dos grandes filósofos... qual é a preocupação
negativa deles? É impedir o erro. Trata-se de conjurar os perigos do erro. Em
outros termos, o negativo do pensamento é que o espírito se engana, evitar que
ele se engane. Como evitar o erro? Depois, há um deslocamento bastante lento, e
no século 18 começa a surgir um problema diferente. Poderia parecer o mesmo,
mas não é: é denunciar não mais o erro, mas denunciar as ilusões. A idéia de
que a mente cai no erro, e está rodeada de ilusões, e mais: que ela própria
produz ilusões. Não apenas cai em erros, mas produz ilusões, é todo o movimento
do século 18, dos filósofos do século 18, a denúncia, a superstição, etc.
Poderia parecer com a situação do século 17, mas, na verdade, o problema que
começa a surgir é inteiramente novo. Pode-se dizer, também aí há razões
sociais, etc., mas há também uma história secreta do pensamento que seria
apaixonante fazer, a questão já não é como evitar cair no erro, mas como chegar
a dissipar as ilusões pelas quais o espírito está rodeado. E, no século 19,
digo coisas simples, rudimentares de propósito. No século 19, o que acontece? É
como se algo se deslocasse, e até mesmo se rompesse completamente, mas é, cada
vez mais, como evitar, o quê? A ilusão, não. É que os homens, como criaturas
espirituais, não param de dizer besteiras. Não é a mesma coisa que uma ilusão.
Não é cair em uma ilusão. É como conjurar a besteira. Isso aparece claramente
em pessoas no limiar da filosofia. Flaubert estava no limiar da filosofia, o
problema da besteira, Baudelaire, o problema da besteira, tudo isso. Já não é o
mesmo que a ilusão. Pode-se dizer, está ligado a evoluções sociais, por
exemplo, a evolução burguesa no século 19, que faz do problema da besteira um
problema urgente. Mas há algo mais profundo nessas evoluções, nessa história
dos problemas que o pensamento enfrenta, e quando se coloca um problema, novos
conceitos aparecem. De modo que, se se compreende a filosofia desse modo,
criação de conceitos, constituições de problemas, os problemas estando mais ou
menos escondidos, é preciso redescobri-los. Percebe-se que a filosofia nada tem
a ver com o verdadeiro e o falso. A filosofia não é procurar a verdade.
Procurar a verdade não quer dizer nada. Trata-se de criar conceitos, o que isso
quer dizer? E constituir um problema? Não se trata de verdade ou falsidade,
trata-se de sentido! Um problema tem de ter um sentido. Há problemas que não
têm sentido, outros que o têm. Fazer filosofia é constituir problemas que têm
um sentido e criar os conceitos que nos fazem avançar na compreensão e na
solução do problema.
CP: Voltemos a duas questões que
lhe concernem mais. Quando você refez a história da filosofia com Leibniz, no
ano passado, foi o mesmo que você fez há vinte anos, antes de produzir sua
própria filosofia? Foi da mesma maneira?
GD: Não, de modo algum. Pois
antes eu me servia, realmente, da filosofia, e da história da filosofia, como
um modo de... como uma espécie de aprendizado indispensável, onde procurava
quais eram os conceitos dos outros, de grandes filósofos, e a que problemas
eles respondiam. Enquanto agora, no livro que escrevi sobre Leibniz, não há
vaidade no que digo, misturei problemas do século 20, que podem ser os meus,
com problemas de Leibniz. Dito que estou convencido da atualidade dos
filósofos. Fazer como um grande filósofo, o que isso quer dizer? Fazer como ele
não é, necessariamente, ser seu discípulo. Fazer como ele é prolongar sua
tarefa, é criar conceitos que têm relação com os que ele criou e colocar
problemas em relação e em evolução com os que ele criou. Creio que, ao fazer
Leibniz, eu estava mais nessa via, enquanto em meus primeiros livros de
história da filosofia, estava no estágio pré-cor.
CP: Você declarou, sobre Spinoza,
e pode-se aplicar a Nietzsche, que eles o ligavam à parte escondida e maldita
da história da filosofia. O que quis dizer com isso?
GD: Teremos oportunidade de
voltar a isso. Para mim, essa parte escondida consiste em pensadores que
recusaram qualquer transcendência. Seria preciso definir, voltaremos a falar
talvez da transcendência, são autores que recusam os universais, ou seja, a
idéia de conceito que têm valor universal, e toda transcendência, ou seja, toda
instância que ultrapassa a terra e os homens. São autores da imanência.
CP: Seus livros sobre Nietzsche
ou Spinoza fizeram época, você é conhecido por eles. No entanto, não se pode
dizer que você é nietzschiano ou spinozista, como se pode dizer de um platónico
ou de um nietzschiano. Você atravessou tudo isso, isso lhe servia de
aprendizado e você já era deleuziano. Não se pode dizer que você é spinozista!
GD: Você me faz um grande elogio.
Se for verdade, fico muito feliz.
CP: Você se sentia spinozista?
GD: Sempre desejei, bem ou mal, posso
ter fracassado, mas acho que tentei colocar problemas por minha conta e criar
conceitos por minha conta. No limite, sonharia com uma quantificação da
filosofia. Cada filósofo seria afetado por um número mágico, segundo o número
de conceitos que realmente criou, remetendo a problemas, etc. Haveria números
mágicos, Descartes, Hegel, Leibniz. Seria interessante. Não ouso me colocar aí,
mas eu teria, talvez, um pequeno número mágico, ou seja, criados alguns
conceitos em função de problemas. Simplesmente, digo para mim: minha honra é
que, seja qual for o gênero de conceito que tentei criar, posso dizer a que
problemas ele respondeu. Senão seria conversa fiada. Acho que acabamos esse
ponto.
CP: Para terminar, a última
questão. É um pouco provocativo. Em 68, ou mesmo antes, quando todo mundo
explicava Marx, lia Reich, não havia provocação de sua parte, voltar-se para
Nietzsche, suspeito de fascismo, naqueles anos, e falar de Spinoza e do corpo,
quando só se falava de Reich? Sua história da filosofia não funcionava como uma
pequena provocação? Não havia provocação?
GD: Não. Isso está ligado ao que
acabamos de dizer. É quase a mesma questão, porque o que eu procurava, mesmo o
que procurava com Félix, era uma espécie de dimensão realmente imanente do
inconsciente. Por exemplo, toda a psicanálise está cheia de elementos
transcendentais: a lei, o pai, a mãe, tudo isso. Enquanto um campo de
imanência, que permitisse definir o inconsciente, isso é o campo... Talvez
Spinoza pudesse ir mais longe do que ninguém, talvez Nietzsche pudesse ir mais
longe do que ninguém. Parece-me que talvez não fosse tanta provocação, era que
Spinoza e Nietzsche formam, em filosofia, talvez, a maior liberação do
pensamento, quase no sentido de um explosivo. E talvez os conceitos, os conceitos
mais insólitos, porque os problemas deles eram problemas um pouco malditos, que
não se ousava colocar, na época de Spinoza, em todo caso, com certeza, mas
mesmo na época de Nietzsche. Problemas que não se ousa colocarem muito,
problemas picantes.(VÍDEO)
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