CP: I de Ideia. O que é ter uma ideia? Demonstração com o
cinema e Vincent Minnelli, o cavaleiro dos sonhos.
GD: Estamos na letra K.
CP: Não, em I. Estamos em I de ideia. Não é mais a ideia platónica
que acabamos de evocar. Mais do que fazer um inventário de teorias, você sempre
foi um apaixonado pelas ideias dos filósofos, pelas ideias dos pensadores no
cinema, ou seja, pelos diretores e pelas ideias dos artistas na pintura. Você
sempre deu preferência à ideia, em vez de explicações e comentários. A sua e a
dos outros. Por que, para você, a ideia preside tudo?
GD: É verdade. A ideia no sentido em que a usamos, pois não
se trata mais de Platão, atravessa todas as atividades criadoras. Criar é ter
uma ideia. É muito difícil ter uma ideia. Há pessoas extremamente interessantes
que passaram a vida inteira sem ter uma ideia. Pode-se ter uma ideia em qualquer
área. Não sei onde não se deve ter ideias. Mas é raro ter uma ideia. Não
acontece todos os dias. Um pintor tem tantas ideias quanto um filósofo, mas não
se trata do mesmo tipo de ideias. Pensando nas diferentes atividades humanas,
seria bom saber sob que forma se apresenta uma ideia em determinados casos? Em
Filosofia, acabamos de ver isso. A ideia, em Filosofia, se apresenta na forma
de conceitos. Há uma criação de conceitos, e não uma descoberta. Conceitos não
se descobrem, são criados. Há tanta criação em uma filosofia quanto em um
quadro ou uma obra musical. Os outros têm ideias... Fico impressionado com os
diretores de cinema. Há muitos diretores que nunca tiveram uma ideia. As ideias
são uma obsessão, elas vão e voltam, se afastam, tomam formas diversas e,
através destas formas variadas, elas são reconhecíveis. Para dar um exemplo
muito simples, penso em um diretor como Vincent Minnelli. A obra dele não cobre
tudo, mas peguei este exemplo por ser mais fácil. Parece-me que ele é uma
pessoa que se pergunta o que quer dizer: “As pessoas sonham”. Dizer que as
pessoas sonham é uma banalidade. As pessoas sonham, sim, mas Minnelli faz uma
pergunta muito estranha que lhe é muito particular: “O que quer dizer estar
preso num sonho de alguém?” Passa pela comédia, tragédia, pelo abominável, etc.
O que quer dizer estar preso no sonho de uma menina? Podem aparecer coisas
terríveis por sermos prisioneiro do sonho de alguém. Pode ser um horror. Às
vezes, Minnelli nos traz um sonho: “O que é estar preso no pesadelo da guerra?”
E o resultado foi o admirável: Os cavaleiros do Apocalipse. E ele não vê a
guerra como guerra, do contrário, não seria Minnelli, e, sim, como um grande
pesadelo. O que quer dizer "estar preso num pesadelo"? Estar preso no
sonho de uma menina resulta nos famosos musicais em que Fred Astaire ou Gene
Kelly, não sei ao certo, escapa das tigresas e panteras negras. Isso é estar no
sonho de alguém. É uma coisa gigantesca. Eu diria que isso é uma ideia. No
entanto, não é um conceito. Se Minnelli trabalhasse com conceitos, ele faria
Filosofia e não cinema. Eu diria que é preciso distinguir três dimensões, três
coisas tão poderosas que se misturam o tempo todo. E este é o meu trabalho
futuro. É isso que eu gostaria de fazer e tentar entender melhor isso. Há os
conceitos, que são a invenção da Filosofia, e há o que podemos chamar de
“perceptos”. Os perceptos fazem parte do mundo da arte. O que são os perceptos?
O artista é uma pessoa que cria perceptos. Por que usar esta palavra estranha em
vez de percepção?
Porque perceptos não são percepções. O que é que busca um
homem de Letras, um escritor ou um romancista? Acho que ele quer poder
construir conjuntos de percepções e sensações que vão além daqueles que as
sentem. O percepto é isso. É um conjunto de sensações e percepções que vai além
daquele que a sente. Vou dar alguns exemplos. Há páginas de Tolstoi que
descrevem o que um pintor mal saberia descrever. Ou páginas de Tchekov que, de
outra maneira, descrevem o calor da estepe. Há um grande complexo de sensações,
pois há sensações visuais, auditivas e quase gustativas. Alguma coisa entra na
boca. Eles tentam dar a este complexo de sensações uma independência radical em
relação àquele que as sentiu. Tolstoi também descreve atmosferas. As grandes páginas
de Faulkner! Os grandes romancistas conseguem chegar a isso. Há um grande romancista
americano que quase disse isso. Ele não é muito conhecido na França, e gosto muito
dele. É Thomas Wolfe. Ele descreve o seguinte: “Alguém sai de manhã, sente o ar
fresco, o cheiro de alguma coisa, de pão torrado, etc., um passarinho passa
voando... Há um complexo de sensações. O que acontece quando morre aquele que
sentiu tudo isso? Ou quando ele faz outra coisa? O que acontece?”
Isso me parece a questão da arte. A arte dá uma resposta para
isso: dar uma duração ou uma eternidade a este complexo de sensações que não é
mais visto como sentido por alguém ou que será sentido por um personagem de
romance, ou seja, um personagem fictício. É isso que vai gerar a ficção. E o
que faz um pintor? Ele faz apenas isso também, ele dá consistência a perceptos.
Ele tira perceptos das percepções. Há uma frase de Cézanne que me toca muito.
Um pintor não faz outra coisa. Há uma frase que muito me impressiona.
Pode-se dizer que os impressionistas distorcem a percepção.
Um conceito filosófico ao pé da letra é de rachar a cabeça, porque é o hábito
de pensar que é novo. As pessoas não estão acostumadas a pensar assim. É de
rachar a cabeça! De certa forma, um percepto torce os nervos e podemos dizer
que os impressionistas inventaram perceptos. Mas Cézanne disse uma frase que
acho muito bonita: “É preciso tornar o
impressionismo durável”. Quer dizer, que o motivo ainda não adquiriu
independência. Trata-se de torná-lo durável e, para isso, são necessários novos
métodos. Ele não quis dizer que se deve conservar o quadro, e sim que o
percepto adquire uma autonomia ainda maior. Para tal, precisará de uma nova técnica.
E há um terceiro tipo de coisa e muito ligada às outras duas. É o que se deve chamar
de afectos. Não há perceptos sem afectos. Tentei definir o percepto como um conjunto de
percepções e sensações que se tornaram independentes de quem o sente. Para
mim, os afectos são os devires. São devires que transbordam daquele que passa
por eles, que excedem as forças daquele que passa por eles. O afecto é isso.
Será que a música não seria a grande criadora de afectos? Será que ela não nos
arrasta para potências acima de nossa compreensão? É possível.
Mas o que quero dizer é que as três estão ligadas. É uma
questão de acentuar as coisas.
Quando se pega um conceito filosófico, este conceito faz com
que se veja as coisas. Os filósofos têm este lado de videntes, pelo menos
aqueles de quem gosto. Spinoza faz ver. É um dos filósofos mais videntes que
existe. Nietzsche também faz ver. E eles também são fantásticos “lançadores de
afectos”. É por isso que me vem logo à mente a ideia de uma música destes
filósofos. Assim como a música faz ver coisas estranhas. Às vezes, ela nos faz
ver cores, mas cores que não existem fora da música. E os perceptos também.
Todos estão muito ligados. Eu sonho com uma espécie de circulação entre uns e
outros, entre os conceitos filosóficos, os perceptos pictóricos, os afectos
musicais. E não é de se espantar que existam repercussões. Por mais
independentes que sejam estes trabalhos, eles se penetram constantemente.
CP: Essas ideias dos pintores, artistas e filósofos são o
contrário de se ter uma ideia, são uma ideia da percepção, do afecto e da
razão. Por que você... Na vida, a gente pode ver um filme ou ler um livro que
não tem uma ideia nenhuma. Mas isso o chateia muito, não lhe interessa, acha
chato. Para você, não interessa ver ou ler alguma coisa que pode ser divertida
se não existe uma ideia. Se não tem ideia.
GD: No sentido em que acabo de definir a ideia, não sei como
seria possível. Se me mostrar um quadro que não tem percepto nenhum, onde há
apenas uma vaca representada com uma certa semelhança, mas sem percepto de
vaca, onde a vaca não seja elevada ao grau de percepto, não há interesse. Se me
faz ouvir uma música sem afecto, eu nem entenderia o que é. Se me mostrar um
filme ou um livro de filosofia idiota, não vejo prazer algum nisso.
CP: Mas não é um livro de filosofia idiota, pode ser
humorístico, que contenha humor.
GD: Um livro humorístico pode estar cheio de idéias. Tudo
depende do que chama de humorístico. Nunca ninguém me fez rir tanto como Beckett
ou Kafka. Sou muito sensível ao humor. Acho que é extremamente engraçado. Não
gosto tanto dos comediantes na TV.
CP: Menos Benny Hill, que tem uma ideia cómica.
GD: Sim, se ele tiver uma ideia. Mesmo nesta área, os grandes
burlescos americanos têm algumas ideias.
CP: Para fechar esta questão mais pessoal, já lhe aconteceu
de sentar-se para escrever sem ter ideia do que vai fazer? Se não tem ideia, o
que acontece?
GD: Se eu não tenho uma ideia, não me sento para escrever. O
que pode acontecer é que a ideia não esteja precisa, que ela me escape, que eu
tenha buracos de memória. Eu tive e tenho esta dolorosa experiência, sim. As
coisas não fluem. Ideias não nascem prontas.
É preciso fazê-las e há momentos terríveis em que se entra em desespero
achando que não se é capaz.
CP: É a expressão ou a ideia que faltam? São as duas coisas?
GD: É impossível diferenciá-las. Será que tenho a ideia e não
consigo expressá-la ou não tenho ideia alguma? É tão parecido. Se não consigo
expressá-la, não tenho ideia. Ou me falta uma parte da ideia, pois ela não
chega inteira. Ela vem de partes diferentes, de vários horizontes. Se falta-lhe
um pedaço, ela é inutilizável.
(Vídeo)
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