Trump arrisca-se a ser, contra aquilo que desejava, o factor de união que faltava à Europa para tomar consciência de si própria.
Sim, e se Trump fosse – apesar dos tremendos perigos que faz correr
aos Estados Unidos, ao mundo e à Europa – uma vacina providencial contra
as ameaças de desordem, caos e desagregação dos equilíbrios
internacionais que ele prenuncia? É essa, porventura, a última
oportunidade que nos resta para ser optimistas face ao pessimismo
histórico suscitado pela sua eleição e a sua tomada de posse na passada
sexta-feira. Agora que estamos obrigados a viver com ele, como encarar,
de forma minimamente positiva, as consequências da sua actuação – se
exceptuarmos, claro, um remake do Dr. Strangelove, o
filme visionário de Stanley Kubrick, em que a demência de um cientista
influente no poder americano precipita o mundo numa guerra termonuclear
(com Trump a carregar nos códigos secretos que poderiam desencadeá-la)?
Uma resposta possível é-nos fornecida por Stephen Skowronek, um
professor de ciências políticas da Universidade de Yale, em entrevista à
revista The Nation e citado por Nicolas Colin no L’Obs (o novo nome do Nouvel Observateur).
Skowronek evoca dois precedentes históricos: Hoover, que não foi capaz
de enfrentar a crise de 1929 e entregou o destino da América a
Roosevelt, desacreditando o Partido Republicano por várias gerações, e
Jimmy Carter, que "precipitou o Partido Democrata numa crise durável e
abriu o caminho à revolução conservadora" (de Reagan). Ora, Trump
poderia funcionar como "disjuntor", ou seja, para "desacreditar enfim o
Partido Republicano e abrir, em quatro anos, uma nova fase de
reconstrução por um novo Presidente democrata".
Optimismo
excessivo, considerando que os quatro anos de mandato de Trump teriam
consequências irreparáveis? Eis uma questão pertinente. Mas talvez os
excessos indomáveis do novo Presidente lhe criem – estão já a criar,
aliás – um ambiente insustentável face aos poderes institucionais
americanos, com um Congresso onde os democratas e os republicanos hostis
a Trump poderão eventualmente desenvolver um cenário favorável a um impeachment. Por muito menos foi o que chegou a acontecer a Bill Clinton.
Tendo em conta as contradições gritantes, manifestadas nas audições
no Congresso, entre Trump e membros relevantes da sua equipa
governativa, além das incompatibilidades escabrosas entre os negócios
privados do novo Presidente e os interesses do Estado, esse cenário não é
inverosímil. Finalmente, os contrapoderes alicerçados no princípio da
liberdade de imprensa – hoje postos em causa pela pós-verdade dos
slogans telegráficos de Trump nas redes sociais – ainda conservam um
estatuto constitucional que, de resto, Obama evocou na sua última
conferência de imprensa para justificar um regresso ao combate político
depois de deixar a presidência.
Numa das suas últimas
declarações antes de tomar posse, Trump apresentou-se como um cruzado do
"Brexit" e da desconstrução da União Europeia (UE), identificando-se
com as posições eurocépticas e o extremismo de direita na Europa. Mas os
efeitos anunciados do "Brexit" na Grã-Bretanha, apesar da atitude
seguidista e cega da primeira-ministra britânica, só têm reforçado a
convicção de que são os britânicos quem terá mais a perder no confronto
com a UE, considerando não só os prejuízos contabilizáveis dos dois
lados do canal mas até o cenário de desunião no Reino Unido (com a
hipótese de um novo referendo para a independência da Escócia).
Afinal,
Trump arrisca-se a ser, contra aquilo que desejava, o factor de união
que faltava à Europa para tomar consciência de si própria. As duas
expressões típicas da pós-verdade – Trump e o "Brexit" – poderão
contribuir, ultrapassando todas as vontades dispersas e contraditórias
na UE, para que aquilo que parecia impossível se torne finalmente
viável: uma Europa mais solidária, mais coesa, mais autónoma – até no
plano de uma Defesa comum – e convergindo no sonho desenhado pelos seus
pais fundadores.
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