Rui Tavares
A sua grandeza está em ter acertado em dois grandes essenciais: democracia pluralista e construção europeia.
Mário Soares perdeu eleições, enganou-se redondamente algumas vezes,
prescindia de ser exemplar e não tinha vocação (nem paciência) para ser
santo. A sua grandeza está em ter acertado no essencial, ou melhor, em
dois grandes essenciais: democracia pluralista e construção europeia.
Se esses dois grandes essenciais hoje nos parecem banais, a verdade é
que em tempos o não foram de todo. Cada um deles fez parte de uma
grande batalha de ideias que precisou de ser ganha e que vale a pena
revisitar em busca de conteúdo prático. As duas batalhas que Soares
ganhou não travou sozinho e não acabaram ainda. Precisámos dele no
passado, mas ainda precisamos dele para o futuro.
Antes do 25 de
Abril, Portugal era um império colonial. Para uma parte da elite
portuguesa, a discussão crucial era sobre como manter esse império. Só
que um império não pode ser uma democracia — nem nas colónias nem na
metrópole — e Portugal teria de decidir onde estava a sua prioridade.
Podemos ver essa batalha de ideias como um confronto entre “Portugal e o
Futuro” de Spínola e “Portugal amordaçado”, de Soares. Spínola propunha
uma espécie de federalismo tardio entre Portugal e as colónias. Soares
dava prioridade à libertação das sociedades de um lado e do outro. O
projeto de Spínola não era só incompatível com essa libertação; era
incompatível com a realidade do tempo. A anomalia de uma Europa que
repartia entre si o resto do mundo já estava a ser revertida. Atrasar
esse processo tinha resultado numa cruel guerra colonial e nada de bom
viria de prolongá-lo mais ainda. Soares via o desfecho dessa tendência
da história com naturalidade e até com alívio, e essa sua lucidez
ajudou-o a ganhar a batalha: desamordaçar Portugal implicava
descolonizar.
A segunda batalha de ideias decorre naturalmente da primeira.
Infelizmente criou-se entre nós a ideia de que o projeto europeu foi
para Portugal um daqueles esquemas de “enriqueça depressa agora” que às
vezes nos chegam pelo correio. Esse lugar-comum desvalorizou e
descaracterizou o nosso debate europeu até aos dias de hoje: quando
deixou de haver (tanto) dinheiro e passou a haver austeridade, foi como
se a Europa já não fizesse sentido. Algumas interpretações mais
sofisticadas ainda admitem que a pertença ao projeto europeu tenha
permitido a Portugal consolidar-se enquanto democracia e estado de
direito como nunca na sua história o conseguira. Democracia e Europa
são, de facto, ainda mais contemporâneas do que às vezes parece: embora a
adesão oficial à CEE se dê só em 1986, os pedidos de adesão ao projeto
europeu são de 1975 e 76. Mas mesmo esta perspectiva peca por defeito.
Tal como a Europa não é um mero projeto de “enriqueça depressa agora”,
também não é uma garantia de “mantenha-se uma democracia e um estado de
direito sustentável” até ao fim dos tempos. Ambas essas missões têm de
vir de dentro para fora. Afinal o que é o projeto europeu? O projeto
europeu foi a forma que os países europeus encontraram para manter
relevância e soberania numa fase pós-imperial da história. Ao contrário
da opinião convencional, a UE não apareceu para dissolver os países
europeus, mas para os salvar — numa fase da história em que deixaram de
ter o poder desproporcionado e injusto dos impérios.
Como disse
antes, Soares não ganhou nenhuma destas batalhas sozinho (e não falo só
daqueles que o acompanharam, de Melo Antunes a Medeiros Ferreira). O que
Soares viu, com maior clareza do que outros, foi que a maioria dos
portugueses já concordava — ou viria a concordar — com estas ideias. Foi
isso que lhe permitiu defendê-las até contra elites nacionais e
internacionais que as davam por perdidas. É por isso que ele se tornou
um político com relevância europeia e mundial. E é isso que teremos de
aprender a fazer com o exemplo de um homem que não tinha interesse em
ser exemplar. Usando duas palavras mal-jeitosas: o que nos deve
interessar agora não é memorializar Soares, mas operacionalizá-lo.
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