"Eu quero acompanhar o meu cantar vagabundo de todos aqueles que velam pela alegria no mundo"
(caetano veloso)
04 janeiro 2017
Kusturica é sempre um mundo inesperado...
Sabemos sempre que nos vai surpreender e surpreende mesmo, não adianta estar preparado para a surpresa, ver um filme do Kusturika é muito à frente, mudamos de mundo. Cor, som, mundo, formas de funcionar, tudo muda; parece que demonstra sempre que 'life is a miracle!' : on the Milky Road ou a via láctea é Kusturika...
A amada morreu num campo com cordas atadas a minas, Emir, o actor, prepara-se para morrer, para suicidar-se rebentando outra mina e quando ia dar o pontapé final é agarrado: 'então!? não podes morrer: quem guardaria a memória dela e do vosso Amor se morresses!?'
Emir Kusturica (n. 1954) é um realizador controverso que, como
poucos, suscita as mais extremadas opiniões. E é assim controverso por
duas ordens de razões. Por um lado as propriamente cinematográficas,
pela adesão ou rejeição imediata, epidérmica mesmo, que suscitam a
desmesura e imaginário figurativo dos seus filmes. E, por outro, pela
sua trajectória política durante a guerra na ex-Jugoslávia e suas
sequelas, bem como pelas suas idiossincrasias megalómanas – e note-se
que estas últimas são matérias de facto e não da subjectividade de
apreciações.
Kusturica destacou-se logo com Recordas-te de Dolly Bell?, Leão de Ouro para a melhor primeira obra em Veneza em 1981 e foi consagrado com O Papá Está em Viagem de Negócios,
Palma de Ouro em Cannes em 1985, muito claramente duas obras de “jovem
cineasta”, duas revisitações sob prisma íntimo da História da
Jugoslávia comunista de Tito, os anos 60 na perspectiva de um
adolescente, no primeiro filme, a de 1950 narrada por um miúdo, no
segundo.
O seu cinema evoluiu entretanto num sentido desmesurado
que, podendo até nalguns casos estar inscrito em matérias do real e da
História ou, na mesma ordem de razões, da cultura e sentir de uma
comunidade específica, no caso os ciganos, é feito de excesso e “para
além” do real, num “sobre-real” mesmo, quando não até taxativamente
“surrealismo”. E assim se sucederam O Tempo dos Ciganos (1989), a viagem americana de Arizona Dream (1993) e dois absolutos delírios, a apoteose de Underground (nova Palma de Ouro em Cannes, 1995) e o regresso aos ciganos com Gato Preto, Gato Branco (1998).
Só que ocorreu com Kusturica o horizonte negativo dos cineastas, dos
artistas, que operam nesse estreito fio de risco que são a desmesura e o
excesso. A Vida é um Milagre (2004) era (é) uma catástrofe também ela absoluta, e Promise me this (2007,
nunca estreado em Portugal e um fracasso internacional) um “monumento”
de auto-indulgência e auto-citação insuportavelmente repetitivo.
O realismo íntimo dos primeiros filmes, Lembras-te de Dolly Bell? e O Papá Está em Viagem de Negócios
Seria Kusturica “um caso arrumado”? Deve haver uma prevenção genérica
com este tipo de catalogação e ter a disponibilidade suficiente para
ainda se deixar ser surpreendido – já me ocorreu mais que um caso em que
considerei um realizador já “assunto encerrado” e depois haver um filme
que me levava a reconsiderar. Além disso´, e no caso concreto, com Na Via Láctea Kusturica,
qual Fénix, renasce das cinzas, ou das misérias em que havia caído o
seu cinema, com uma prodigiosa obra-prima, absolutamente espantosa, que é
o seu filme mais arriscado e também uma súmula, convocando inúmeras
memórias dos anteriores e incitando à sua revisão e reconsideração.
Pegar ou largar
Este é, por demais claramente, um caso de “pegar ou largar”.
Compreendo que haja rejeições veementes do filme mas por mim estou
“pegado”, e não sou eu que “pego” o filme, é ele que se “pega” a mim,
logo desde o assombroso primeiro plano do falcão na montanha – fica-se
“colado” ao ecrã. Este é um daqueles raríssimos casos em que temos de
repor a questão de base, perdida na sucessão de visões de filmes, ou até
na voracidade do consumo: o que é o Cinema?
O aparato e a arte
cinematográfica têm uma capacidade ímpar de indagar, captar e registar
os indícios do Real e da História, constituindo-se como uma experiência
do mundo tanto mais relevante quanto é rápida e alargada a sua
possibilidade de difusão. Mas a arte cinematográfica é também espectral e
fantasmática, propiciadora de espantos e assombrações. São de algum
modo, ainda que transfigurados, os dois polos existentes desde os
primórdios, Lumière ou o real, Méliès ou a ilusão.
E porque se repõe a questão com Na Via Láctea?
Porque o filme anuncia-se, num cartão logo ao princípio, ser baseado em
histórias reais, e aborda uma iniludível tragédia real, a das guerras
na ex-Jugoslávia (inclusive de modo muito mais frontal que Underground,
que tinha supostamente como quadro a II Guerra Mundial, embora não
deixe de ser óbvia que era uma metáfora das turbulências do
desmembramento do antigo país, que se torna explicito no final, com o
bocado de terra que se separa e a derradeira frase, “era uma vez um
país”), e todavia transcende em absoluto qualquer realismo, de modo
inaudito e até “miraculoso”.
O cinema Kusturica extravasando para além do real, com alucinações, hipnoses, sonhos, levitando: O Tempo dos Ciganos e Underground. Eis também o que nos conduz a uma “digressão” pela obra de Kusturica. Ele
estudou na FAMU, a famosa escola de Praga, e nessa sua obra cedo se dá a
ver a decisiva influência dos filmes checos de Milos Forman (antes da
invasão soviética e do seu exílio), o “realismo íntimo” mas também de
implicações geracionais e sociológicas dos maravilhosos O Ás de Espadas (1964) e Os Amores de uma Loira (1965), depois a dança incendiária e carnavalesca de O Baile dos Bombeiros (1972). Lembras-te de Dolly Bell? evoca irresistivelmente O Ás de Espadas e de modo mais lateral Os Amores de uma Loira, e não foi nada fortuito que a inesperada Palma de Ouro a O Papá Está em Viagem de Negócios tenha sido atribuída por um júri presidido por Forman.
Só que com as personagens principais de um e outro já havia práticas
ou ocorrências que, ainda que não saindo do quadro do real, eram de
âmbito digamos que “para-normal”: o Dino de Dolly Bell praticava
“hipnose, auto-sugestão”, inclusive com o seu coelho (começo logo no
“anunciador” primeiro filme do inacreditável bestiário que Kusturica foi
reunindo), o Malik de O Papá tornava-se sonâmbulo.
Mas
havia ainda outra recorrência. O primeiro plano do primeiro filme era um
homem, o “controleiro”, o pregador do partido, com grossos óculos
escuros e o encarregado que se ocupava dos miúdos era chamado de “Quatro
Olhos” pelos seus espessos óculos; isso tinha também Mirza, o irmão
mais velho de O Papá….
Ou seja, desde os primeiros filmes
Kusturica punha em cena uma condição “reforçada” de visão, mas também
distorcida, o que voltava a acontecer com o rapaz que é personagem
principal do filme seguinte, O Tempo dos Ciganos, que também
usa óculos muito graduados, com a particularidade acrescida de a lente
esquerda estar tapada - e o Kosta interpretado pelo próprio Kusturica de
Na Via Láctea reforça a visão com um monóculo!
E, claro, desde os primeiros filmes havia a música, as cançonetas e os bailes, em roda-viva, que nos dois filmes de guerra, Underground e este agora, se tornam delirante dança macabra.
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