O fim de dois mundos
Se a partir do estrangeiro a eleição de Centeno
marca o fim de um mundo, a partir de Portugal ela marca o fim de, não
um, mas dois mundos.
É fácil aferir o impacto da eleição de Mário
Centeno para a presidência do Eurogrupo através da imprensa
internacional, dentro e fora da União Europeia. Para o New York Times,
a eleição de Centeno marca já um olhar para lá da crise que afligiu a
moeda da UE (como escrevi aqui segunda, “a longa depressão do euro está a
acabar”); para o Le Temps, de Genebra, “Centeno deverá reformar o euro”; para o francês Libération, trata-se da eleição de “um homem de esquerda”; finalmente, para o El País, a eleição de Centeno “põe um ponto final simbólico na austeridade”.
Se olharmos cá para dentro, porém, rapidamente encontraremos quem
ache que todos estes observadores não percebem nada disto ou que devem
ter começado ontem a prestar atenção à moeda única europeia. Na política
como no comentário nacional não falta quem seja taxativo. À direita
alega-se que o cargo é importante, mas que Centeno não poderá ter na
Europa a competência que persistem em negar-lhe em Portugal. À esquerda o
argumento é inverso: se Mário Centeno pudesse mesmo contribuir para
reformar o euro não lhe tinham dado o cargo — até porque, como está
proclamado, o euro é irreformável por decisão dogmático-ideológica. A
sanha com que BE e PCP se atiraram à escolha de Centeno é pelo menos tão
agressiva quanto o escárnio com que a direita recebia essa
possibilidade ainda há pouco tempo.
Estes comentários merecem, em
si, comentário. A doutrina dominante tem sido a de que eles se explicam
por razões táticas. De olhos postos no futuro, PSD e CDS desvalorizam a
vitória de Centeno e BE e PCP tomam as suas distâncias para poderem
ganhar margem em relação ao governo. Não estou convencido. Ao contrário
da doutrina dominante, não acho que possamos explicar estas reações a
partir do futuro mas antes a partir do passado. Elas não prenunciam
aquilo que os atores políticos possam vir a dizer. Pelo contrário, elas
denunciam aquilo que os atores políticos (e os comentadores, e os
académicos, e os economistas, sejam eles pró-austeridade ou anti-euro)
deixam de poder dizer daqui para a frente.
Se a partir do estrangeiro a eleição de Centeno marca o fim de um
mundo, a partir de Portugal ela marca o fim de, não um, mas dois mundos.
O
mundo da direita acaba porque a partir de agora é impossível dizer que
as políticas económicas do governo são irresponsáveis e, por isso, nos
levam diretamente contra a lógica do Eurogrupo. Se assim fosse, como se
explica que o Eurogrupo tenha decidido consagrar a cara dessas
políticas?
À esquerda, não têm conta as vezes que me foi dito —
repetitivamente e amiúde aos berros — que eu era um otário se pensava
que um governo minimamente de esquerda em Portugal não iria ser recebido
de outra forma na Europa que não fosse pelo fechamento das torneiras do
BCE que nos levaria a sair do euro. Um orçamento que “nós”
aprovássemos, assim rezava a lenga-lenga, era um orçamento que a Europa
chumbaria. Ora, já lá vão três orçamentos que nós aprovamos — e a
malandra da Europa nomeia o autor desses orçamentos para presidir ao
Eurogrupo.
Alguma coisa está mal, tanto para uns argumentos como
para os outros. Dois mais dois não podem dar ao mesmo tempo três e
cinco. Agora é questão de tempos até que os defensores de tais
argumentos se apercebam de que carburam no vazio, mas ainda não excluo
que me repitam impacientemente o quanto estou errado ao dizer que uma
governação à esquerda é compatível com a UE (tal como estive errado
quando disse que a Grécia não iria sair do euro, que Portugal não iria
ser punido com sanções, etc.).
Em suma, estas reações políticas
(e, não o esqueçamos, do comentariado e da academia) explicam-se mais
pela frustração do que pela tática. Elas revelam a irritação com a
realidade que refutou aquilo que certas reputações e pequenos poderes
repetiram tão convictamente durante tantos anos. A incompatibilidade
entre esquerda e Europa era dogma em ambos os lados, mas agora já não se
pode dizer à direita que a política anti-austeritária é irresponsável,
nem à esquerda que ela é anti-União Europeia.
É o fim de dois mundos diferentes, aparentemente opostos, mas operando segundo princípios fundamentalmente equivalentes.
Rui Tavares
O mundo anti europa da esquerda (BE moderno e PCP experiente) caí porque o ministro das finanças do governo da Geringonça foi eleito para o Eurogrupo as desconfianças caem; o mundo da direita deixa a austeridade como única via possível vazio.
O Mário Centeno tecnocrata e burocrata não será o que teremos.
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