06 dezembro 2018

Homem sábio, homem bom (por Rui Tavares)

Quando penso em Fernando Belo, lembro-me da tríade que compunha a crença dos zoroastras. Essa tríade era simplesmente: bons pensamentos - bons gestos - boas palavras. Como se nada mais fosse preciso.

Conheci Fernando Belo pela primeira vez num debate organizado pela minha prima Irina numa escola secundária de Olivais/Moscavide. Creio que o ano era 1993. O tema era o Maio de 68, nos seus 25 anos. Na mesa estava ele, que viveu em Paris durante o maio de 68, e era à altura padre católico; o historiador e escritor Paulo Varela Gomes; e eu (só sobrevivo eu; é a primeira vez que me acontece).

Lembro-me que os estudantes queriam falar do passado. Paulo Varela Gomes queria falar do presente. E Fernando Belo falou do futuro. De inteligência artificial, do futuro do trabalho, de ecologia e de genética e de muitas outras coisas — temas que hoje estão na moda; em 1993 ainda não era bem assim.
Foi a primeira vez, se não erro, que estive com o filósofo (que fora padre e antes disso fora engenheiro e que pelo meio fora diretor de jornal e creio que até autor de programas televisivos documentais) Fernando Belo. Mas eu já conhecia Fernando Belo antes porque para mim ele não era filósofo nem ex-padre nem nada disso mas simplesmente o pai do meu grande amigo da faculdade André Belo, com quem depois fui para França fazer o doutoramento. E por isso ele se tornou para nós rapidamente também o pai da Clara e do Zé Maria e o companheiro da Teresa Joaquim, também autora e professora. E por isso ele passou a ser, gradualmente, o homem de barbas grandes e olhos curiosos que nos recebia em casa dele e ouvia com abertura e atenção o que tivéssemos para lhe dizer de interessante, independentemente de idade ou trajetória ou origem.
(Um dia, antes de se reformar, estava ele a avaliar testes. “Uma chatice”, dizia. Porquê, os alunos eram ignorantes? “Não, não, é porque quando dizem coisas interessantes fico depois imenso tempo a pensar naquilo e não cumpro com as minhas outras coisas”).
Estou convencido de que a obra de Fernando Belo vai ser muito lida e inspirar muita gente no futuro. Como argumento apresento os seus dois últimos livros, cujos índices ele me mandou por e-mail antes da publicação (saíram recentemente pela Colibri). Um deles é um livro sobre “a unificação dos saberes”, um tema de toda a sua vida, a que costumava chamar “filosofia com ciências”. O outro tem um título belíssimo e um subtítulo mais certeiro ainda: Seja um texto de paixão. Onde se mostra que sem a Filosofia não haveria Europa.
O leitor pode achar que este livro me interessa porque nele se fala de Europa. E não errará. Só que mais importante ainda é o que está por detrás: a filosofia. E mais importante ainda é o que está por detrás da filosofia: o amor, a amizade. Demoramos muitos anos a achar que a parte mais importante da palavra filosofia é a segunda metade, sofia, o conhecimento ou sabedoria, quando o que é decisivo é a primeira parte da palavra, philos, ser amigo ou amante da sabedoria. Com sofia apenas pode ser-se apenas um sofista, ou um sabichão. Para se ter o resto, que é o mais precioso, é preciso ter o ímpeto de amor ou amizade pelo conhecimento sem o qual este não vale a pena.
E o que é esse resto, quando se tem tudo? E nós temos, de certa forma, tudo (está é mal distribuído). Temos um universo de dados potencialmente infinito em todas as direções. Dos dados, podemos extrair informação. Mas a informação não chega. Da informação, podemos extrair conhecimento. Mas o conhecimento não chega. E do conhecimento, ou melhor, do amor ao conhecimento, podemos extrair sabedoria. Mas mesmo a sabedoria não chega se não soubermos ser bons.
Isto para os filósofos da Antiguidade era uma banalidade, porque a filosofia era uma forma de nos ajudar a viver (e preparar a morrer). Para os filósofos da Modernidade é possível que as camadas adicionais de complexidade nos tenham feito perder o fio à meada. O que é necessário agora é — para filósofos como, sobretudo, para não-filósofos — recuperar o valor dessa progressão até à sabedoria e à bondade que era então uma banalidade e que durante séculos se acreditou que poderia levar até à felicidade e à liberdade nesta vida (e não apenas após a morte e o fim do mundo).
Claro, nem todos os filósofos, sejam homens ou mulheres, são bons. E nem todas, sejam mulheres ou homens, são sábias. Mas a necessidade de ser ambas as coisas não pode ser menorizada nem desprezada ao abrigo de um qualquer snobismo ou trollismo contemporâneo.
Quando penso em Fernando Belo, lembro-me da tríade que compunha a crença dos zoroastras (antes dos gregos havia os persas; e o zoroastrianismo em que eles acreditavam já era uma crença velha quando o cristianismo era jovem e até mesmo antes, quando Aristóteles e Platão estavam vivos). Essa tríade era simplesmente: bons pensamentos — bons gestos — boas palavras. Como se nada mais fosse preciso. Se calhar não é.
Estão sempre muitas coisas a acontecer no mundo. Mas se não pararmos para lembrar as pessoas que nos ajudam a fazer sentido delas, limitar-nos-emos a viver aquela vida inconsiderada que segundo os primeiros filósofos não merecia a pena ser vivida. Além disso, Fernando Belo era um leitor atento desta crónica, e foram dezenas as vezes que escreveu ao rapazote que era amigo do filho dele para concordar ou discordar. Hoje é a primeira vez que sei que não o vai fazer. Não sei se concordaria ou não. Mas sei como terminaria a mensagem: “boas coisas!”. E é assim que vou terminar, para ele e para nós: boas coisas.

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