Se Macron prosseguir em França a mesma política de austeridade dos
últimos anos, com os mesmos alvos sociais, os demónios que parece
apaziguar, levantar-se-ão todos de novo.
O tema do dia de hoje são as eleições francesas, mas confesso que são
para mim as menos interessantes das eleições recentemente ocorridas.
Esta minha falta de interesse, certamente erro meu, acompanha também um
desinteresse considerável com a política francesa em que nada me parece
inovador e de “futuro”. Bem pelo contrário, mesmo apesar do terramoto
eleitoral suscitado pelas presidenciais, que deixou numa situação de
párias os grandes partidos tradicionais, nem mesmo assim saiu daí nada
de muito novo. Saiu Macron, o homem de quem os conservadores, e a
esquerda do “ajustamento” gostam e que, convém lembrar, vai ser um digno
sucessor de Hollande.
Já todos percebemos que as eleições não eram o que costumavam ser, os
partidos de governo são cada menos de governo, os partidos novos que se
criam ou são “movimentos” mais do que partidos, ou são a reciclagem
quase sempre não conseguida de partidos velhos. O papel do populismo é
importante, mas é um chapéu demasiado grande para nele caberem todas as
coisas que se querem lá meter, uma das quais é a confusão entre popular e
populista e a outra é chamar populista a tudo o que não é conservador
ou centrista. Outra ainda é uma flutuação entre temas de direita e de
esquerda, que muitas vezes não acompanha o proselitismo das estruturas
políticas tradicionais.
Em 2016, Trump enfiou um monumental
barrete na opinião e no jornalismo ilustrado. Depois disso, pelo menos
nos EUA, o jornalismo melhorou muito e aprendeu mais lições do que o
Partido Democrático que bem precisava delas, mas o abalo ainda se faz
sentir. O abalo fez-se em vários sentidos, tanto mais que ele acordou
todo um movimento social e político de “resistência” como não se via na
América desde a guerra do Vietnam. E Trump coloca um grande desafio á
Europa que não pode ser nem residualmente “trumpista” como foi Theresa
May.
Mas Trump não foi o único, Bernie Sanders fez algo de muito
semelhante. Ter um candidato presidencial com considerável sucesso, que
se proclamava do “socialismo”, era nos EUA uma coisa quase impensável, e
a mobilização da juventude à sua volta, acaba por dar um impulso à
“resistência” a Trump. Essa “resistência” vai ser mais longa do que a
pressa de alguns democratas que pensam que o “impeachment” está á porta e
se livram de Trump com facilidade. Não livram, mas a América vai ser
muito diferente depois dele, como acontece sempre com personagens
carismáticas, e Trump é-o. O panorama da política, e por arrasto da
comunicação social, vai ser pela primeira vez do século XXI e não do
século XX. Aqui os EUA estão à frente.
Em 2017, Corbyn fez o mesmo
no Reino Unido. Maltratado até ao limite pela imprensa britânica da
direita à esquerda, considerado uma excrescência ideológica dos anos
sessenta, uma espécie de morto-vivo que tinha ressuscitado do passado
como uma múmia amaldiçoada, humilhado pelos conservadores e pelos
partidários da “terceira via”, sempre com prognósticos de que iria
acabar no dia seguinte, conseguiu um excelente resultado para o Labour,
no meio de uma conjuntura que May e a imprensa pensavam ser de derrota
esmagadora para os trabalhistas. Não adianta dizer que “todos perderam”,
porque o Labour não ganhou as eleições, mas, aquilo que agora se chama o
“momentum” está do seu lado. Não se pode dizer que esse “momentum” dure
sempre, mas enquanto dura condiciona toda a luta política.
Quer
Bernie Sanders, quer Corbyn mobilizaram os jovens como nenhum candidato
fez no passado recente e abriram caminho para que se pudessem discutir
temas e políticas que foram diabolizadas nas últimas décadas. Deixou de
haver uma agenda “ultrapassada” e outra “moderna”, um dos instrumentos
ideológicos dos partidários do “ajustamento”, para retirarem da vida
política aceitável, bem educada, “realista”, todo uma panóplia de
medidas que quase foram ilegalizadas, do socialismo, da
social-democracia, do keynesianismo. O “não há alternativa” é a
principal vítima dos processos eleitorais recentes, mesmo na América de
Trump.
É verdade que em França, também as coisas estão a mudar,
mas bastante menos que no Reino Unido e nos EUA. O sistema político
desagrega-se pouco a pouco, perde capacidade de, por exemplo,
condicionar de forma significativa as presidenciais, mas mantem uma
considerável resistência conservadora à mudança como “surpresa”, a única
mudança que implica um sentido de história. O sistema eleitoral francês
de duas voltas também tem um efeito de marginalização, retirando a
muito eleitores a possibilidade de verem reflectida a sua força numérica
no sistema político.
Num contexto de enorme abstenção, a vitória
esmagadora do proto-partido de Macron, mostra mais a força do
conservadorismo francês do que qualquer impulso de mudança. Ela será
saudada pelos europeístas, que não querem nenhuma mudança na Europa e
vão prosseguir a mesma via de desastre que levou à reacção do Brexit e
ao esvaziamento democrático da União, com a correlativa crescente
contestação das políticas europeias. Pensam que Macron vai “reformar” a
União naquilo que ela precisava, mais democracia nas nações, menos
burocracia em Bruxelas, mais diferença e menos “unidade” à volta da
Alemanha? Não vai. Passada a novidade, corre-se o risco de, com um eixo
franco-alemão com a França com mais força, prossiga a mesma política
centralista.
Será também saudado pelos nostálgicos da política
habitual do centrismo europeu, e pelos saudosistas da “terceira via”,
como uma receita ao mesmo tempo contra o populismo e o nacionalismo, e
contra aquilo que tem vindo a ser chamado o “populismo” de esquerda. Os
que intimamente ficaram furiosos com a performance de Corbyn, - e muita
gente nos partidos socialistas preferia a direita a “essa esquerda”, -
ficam hoje felizes com Macron.
Na verdade, a França, com a
implosão dos socialistas ficou no essencial com duas forças políticas
organizadas e com capacidade eleitoral, os republicanos gaulistas e a
FN. O “Republique en marche” é demasiadamente uma coligação de
circunstância, destinada a dar uma maioria parlamentar ao Presidente
Macron, No entanto, o “centrismo” de Macron pode ser um epifenómeno que
subsistirá enquanto houver o perigo de Le Pen e terá muitas dificuldades
em se estabilizar como um partido político, em particular, quando as
políticas sociais de Macron aparecerem. Macron, como se sabe, foi o
inventor da Lei do Trabalho que causou a maior reacção social nos
últimos anos em França,
A destruição dos grandes partidos da
esquerda francesa, o PSF e o PCF está longe de ser substituída pelos
“movimentos” à volta dos grupos anticapitalistas que herdaram a tradição
trotsquista, que deixam a esquerda francesa com praticamente duas
forças com o mesmo peso, sendo uma delas o PS, que convém não esquecer
estava no poder até há bem pouco tempo, e o “France Insoumise”, cuja
performance eleitoral é razoável, mas está longe de ser um movimento
próximo do que foram os jovens corbynistas no Reino Unido.
A
França tem poucas forças interiores a favor da mudança em comparação com
a Espanha, a Itália e o Reino Unido, e são essas forças, e só essas
forças, seja pelo seu crescimento e afirmação, seja pela reacção que
provocam, as únicas capazes de proceder a alterações significativas do
sistema político. Se Macron prosseguir em França a mesma política de
austeridade dos últimos anos, com os mesmos alvos sociais, que tanto
agrada a Berlim e ao Eurogrupo, os demónios que parece apaziguar,
levantar-se-ão todos de novo. Só a ruptura com essa política pode hoje
na Europa introduzir “novidade” no sistema político.
Sem comentários:
Enviar um comentário