é fecharem os olhos e apreciarem a Arte! Não é toda a gente que consegue receber a dádiva!
O peido de Salvador Sobral (João Miguel Tavares)
Salvador não tem nada que pedir desculpa. Tem apenas de aprender,
como Nietzsche há muito nos ensinou, a beber de um só trago as
tempestades que é capaz de criar.
Já toda a gente sabe o que foi dito no concerto pelas vítimas de Pedrógão Grande, mas vale sempre a pena repetir: “Eu sinto que posso fazer qualquer coisa que vocês aplaudem. Vou mandar um peido para ver o que é que acontece.” Utilizei “peido” no título deste texto, e não “pum”, “traque” ou “flato”, alternativas socialmente mais aceitáveis, por uma razão: apesar de ser palavra feia, só ela faz inteira justiça a esta nova manifestação de desagrado pelo tipo de reconhecimento de que tem vindo a ser alvo. Salvador Sobral, 27 anos, é um homem desconcertante e profundamente incomodado com a absurda fama que se abateu sobre ele, por causa de uma canção simples composta pela sua irmã.
Todo o artista quer ser reconhecido, mas não de qualquer forma. Basta
olhar para Salvador no pós-Eurovisão e escutar com atenção o que diz
nas entrelinhas: ele considera esta fama fraudulenta, por ser fruto de
um acaso e não de um percurso artístico consistente. Salvador Sobral é
um artista verdadeiro que sente ter conquistado uma glória falsa. Está
com dificuldade em perdoar o público por isso, e em perdoar-se a si
mesmo. Essa é a razão porque a sua frase é bruta, mas não ofensiva, tal
como não é ofensivo soltarmos um palavrão depois de nos ter caído um
tijolo no pé. Pelo contrário: a revolta do peido caracteriza e
descontrói na perfeição as regras cínicas da sociedade do espectáculo – a
degradação do “ser” em “parecer”, para citar Debord –, confessando o
desejo íntimo, comum a todo o artista genuíno, de as fazer implodir. A
fama – esta fama específica por causa de Amar Pelos Dois – é o tijolo a cair no pé do artista Salvador Sobral.
Há dias estava a ler a revista Empire,
na qual o louro Dolph Lundgren – bolseiro do MIT que abandonou a
engenharia química para ir apanhar murros de Sylvester Stallone em Rocky
IV, tornando-se uma estrela mundial instantânea – partilhava com os
leitores estas sábias palavras: “Failure is tough, but success can be
worse.” Falhar é mau, mas ter sucesso pode ser ainda pior. E para o
provar há, de facto, uma fila quilométrica de estrelas que perderam o
norte por incapacidade em lidar com a exposição extrema e o eclipse da
sua privacidade. Se lidar com este sucesso já é mau, imaginem lidar com
ele quando sentimos que o mérito que nos é atribuído não tem razão de
ser, e que nos tornámos o nome mais badalado do país graças a um
acontecimento que não nos representa enquanto artista.
Salvador Sobral pediu, entretanto, desculpa: “Sempre falei duas vezes
antes de pensar. Esta minha característica tem a sua parte boa e também
a parte má. [Terça-feira], infelizmente, reconheço que fui bastante
inoportuno.” Não sei se consciente ou inconscientemente, Salvador citou
Chico Buarque e uma canção maravilhosa chamada Bom Conselho
(composta no ano em que eu nasci, 1973, em plena ditadura brasileira),
onde a certa altura se escuta: “Faça como eu digo/ Faça como eu faço/
Aja duas vezes antes de pensar.”
Esta inversão dos lugares comuns é
aquilo que se espera de um criador autêntico. A canção termina com
estes três versos: “Eu semeio o vento/ Na minha cidade/ Vou p’ra rua e
bebo a tempestade.” Salvador Sobral deveria incluir Bom Conselho
no seu reportório, porque aquele peido – o seu peido atlântico – é
precisamente esse vento, que todo o artista tem o dever de semear.
Salvador não tem nada que pedir desculpa. Tem apenas de aprender, como
Nietzsche há muito nos ensinou, a beber de um só trago as tempestades
que é capaz de criar.
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