Transitei do cristianismo para o marxismo bastando-me acreditar no homem.
http://www.youtube.com/watch?v=GmOEi6-wMOs
Intercultura, o mundo desconhecido.
Camilo Azevedo Périplo
"A esquerda falhou completamente nos países islâmicos do Mediterrâneo"
11.06.2009
Por: Alexandra Lucas Coelho O Sul do Mediterrâneo andou devagar
milhares de anos. De repente, levou com colonialismo, ditaduras,
globalização - e refugiou-se nas mesquitas. A esquerda tem culpa,
reconhece Miguel Portas. "Périplo", com texto de Portas e fotografias
de Camilo Azevedo, é uma viagem no tempo e no espaço
Das montanhas do Iémen aos desertos da Líbia, dos cemitérios do Cairo
aos rios da Mesopotâmia, dos "souks" de Alepo aos palácios de Petra, o
livro "Périplo" vai até onde acaba a oliveira na margem sul do
Mediterrâneo.
A série documental que Miguel Portas fez em 2003-4 com o realizador
Camilo Azevedo tinha as duas margens do Mediterrâneo e vem em DVD no
fim do livro. Mas o que agora está em 350 páginas de texto e
fotografias é outra coisa, antes e além das filmagens. Algo entre o
ensaio histórico e a viagem, um périplo no tempo e nestes espaços sem
paralelo em Portugal. O Norte ficará para um futuro volume.
Camilo Azevedo fez a maior parte das fotografias em viagens de
pesquisa, antes de filmar. Miguel Portas escreveu o texto depois da
série, muitas vezes recorrendo a viagens posteriores. Há lugares que
estão no livro e não estão na série, como Jerusalém. Texto e
fotografia são dois discursos paralelos, que frequentemente confluem.
Neste mundo maioritariamente islâmico, mas também judeu e cristão, o
ateu Miguel Portas demora-se nas religiões, e defende ao longo do
livro a necessidade de dialogar com elas. Não o fazer é ignorar a
maioria, e isso foi o que a esquerda fez, erradamente, quando pactuou
com as ditaduras nacionalistas árabes. E os pobres voltaram-se para o
islamismo político.
Miguel Portas diz que gostava de ter lançado "Périplo" semanas antes
da campanha oficial para as europeias, mas o livro ficou pronto apenas
dias antes. As duas primeiras apresentações, em Lisboa e Mértola,
acabaram por aparecer no portal do Bloco de Esquerda, confundindo-se
com a campanha. "Mas ainda não era campanha oficial", justifica
Portas. "O lançamento em Coimbra, já em plena campanha, não o
anunciei." De resto, diz, "é uma questão de pura formalidade", porque
a pré-campanha já vem de Outubro. "As pessoas têm várias dimensões e
nunca dissociei as partidárias e as não-partidárias, desde que cumpra
a lei."
Dizes que "Périplo" não é um livro de história, não é um ensaio, não é
uma reportagem, mas um pouco de tudo isto. Porque é que aparece tão
pouca gente a falar?
Foi uma opção. O documentário é que suscitou o livro, e no
documentário tivemos condições de filmagem sob vigilância, porque em
nenhum daqueles países se filma sem polícia.
Mesmo quando iam às ruínas perdidas da Líbia? Ou sobretudo na Líbia?
Sobretudo na Líbia. E no Egipto os mecanismos de defesa eram muito
grandes. Depois havia um outro problema. Ou se fala árabe ou a
comunicação é difícil com as pessoas comuns. E portanto tinha que
existir a mediação de um intérprete, o que não permitia confirmar a
veracidade das respostas porque era agente de polícia.
Os intérpretes eram-vos atribuídos?
Eram. Mas mesmo quando a mediação é através de uma agência, eles têm
que fazer um relatório de informação. É assim na generalidade daqueles
países.
Nunca encontrei essa realidade. Tem a ver com a câmara?
Tem. Com um pedido de filmagens. Indo a lugares históricos, num
registo cultural, estas eram as condições. Depois, eu podia ter feito
intervir bastante mais gente [a falar], mas isso tornaria o livro
dependente das minhas visitas políticas, nomeadamente à Palestina,
Líbano e Egipto, e eu não quis que o livro fosse de actualidade.
Pareceu-me mais interessante perceber porque tenho sobre a conjuntura
política daqueles países as opiniões que tenho, e para isso era pouco
relevante a reportagem de circunstância.
Interessava-me a grande paisagem civizacional, as tendências longas da
História, que podem determinar comportamentos ou ajudar a
desmistificar conflitos. Mais do que fazer um relato das minhas
viagens na Palestina, pareceu-me importante, por exemplo, trabalhar
sobre as origens do povo judeu ou do judaísmo.
É dos capítulos mais marcados pela História.
Aí, tinha duas opções. Ou fazia reportagem nos dois lados, mas não
tenho conhecimento para tirar um ponto de vista suficientemente
original face a tanta coisa escrita e editada, ou fazia um mergulho em
certas histórias da História para proporcionar a um público português
- e este livro está escrito para portugueses - análises pouco
conhecidas cá.
Mas há momentos em que aparecem resquícios dos cadernos de viagem, com
diálogos. Aproveitar mais isso podia distrair a estratégia do livro?
Tive medo de o contaminar de reportagem. A minha preocupação foi que
tanto fosse acessível ao meu filho mais velho, que gosta de História,
como a um professor, a um jornalista, como retaguarda na qual a
actualidade se inscreve. Não achei que fosse capaz de fazer sobre a
actualidade melhor do que tem sido feito.
Os capítulos também variam. Há uns que têm mais História, outros mais
viagem, com algumas peripécias. Como quando estava na Estrada dos
Sudaneses, na Líbia, e me deparo com um concerto de relâmpagos. Foi aí
que tive a minha luz, que descobri o princípio da racionalidade na
religião. Isso tem mais a ver com a literatura de viagens
introspectiva.
Tal como a parte em que falas do deserto.
Há elementos intimistas, como há outros que são quase de guia.
Isto começou por ser um livro de fotografias legendadas, com base no
acervo do Camilo, à roda de 10 mil fotos. Depois, os primeiros ensaios
que fiz não me satisfizeram. Tentei textos curtos sobre grupos de
fotografias, mas ninguém compra um livro para ver nele a mesma coisa
do documentário. Comecei a construir capítulos.
O primeiro, dos mesopotâmicos, era demasiado curto comparado com os
outros. Decidi, a partir dos mesopotâmicos e dos rios [Tigres e
Eufrates], resumir o livro do ponto de vista da grande viagem
histórica. Portanto, esse capítulo é uma espécie de apresentação.
O seguinte, do Egipto, é muito mais viajante. Mas amarrei-me a um
escrito pouco conhecido do Eça de Queirós ["O Egipto"]. Por que é que
o Eça jovem via o Egipto daquela maneira? Quase sigo a reportagem
dele.
Há um outro capítulo com base num livro, o do Cairo, mas o propósito é
revelar uma novidade. Porque se vemos a grande história do
Mediterrâneo em [Fernand] Braudel, podemos ver outra grande história
em [Schlomo Dov] Goitein [erudito judeu que estudou milhares de
documentos de mercadores judeus dos séculos IX-XIII, uma
micro-história do quotidiano]. Entre Braudel e Goitein estão as
grandes coordenadas do entendimento do Mediterrâneo. A vantagem do
Goitein é que era desconhecido em Portugal.
E orientei esse capítulo para as mulheres, porque o capítulo seguinte
seria sobre as mulheres. Portanto, cada capítulo foi tendo a sua
própria história.
Do Iémen à Líbia, quais são os teus lugares de eleição?
O vale de Hadramaut, a grande paisagem do oásis em forma de rio e da
arquitectura de terra...
No Iémen.
... Aliás, se tivesse que escolher um país seria o Iémen. Não é só o
vale de Hadramaut. São aquelas montanhas do Centro e do Norte, todas
em socalco, com quatro, cinco vezes a dimensão do Douro.
É o único país onde vi que a história fazia efectivamente parte do
presente, como força propulsora. Constrói-se como sempre se construiu.
No mundo árabe, é a única arquitectura espampanante para fora.
Normalmente, a arquitectura do mundo árabe é cega para fora, porque o
espaço público é o da família no pátio. No Iémen, não. E é assim no
Sul [com vários andares em terra] e em Sana [a norte], com construção
de pedra, cada andar construído geração a geração.
Pelo choque negativo, um outro lugar foi o Vale do Jordão [que
atravessa Israel e a Cisjordânia, ao longo da fronteira com a
Jordânia]. Creio que quando Moisés chegou ao cimo do Monte Nebo com
120 anos e Deus lhe disse "Aqui tens a Terra Prometida", o tipo disse:
"Se esta é a Terra Prometida, por aqui me fico" - e pimba, morreu no
Monte Nebo. É brutal, a secura. É uma terra abaixo do nível do mar, um
ar abafado, um rio Jordão que se salta de um pulinho, pouco mais que
um riacho, um mar que é Morto, tudo terrível.
Belíssimo mas estéril.
De cima, parece estéril. Está longe da ideia de paraíso.
Depois, se tivesse que escolher uma cidade, há três, Lisboa, Nápoles e
Istambul, que têm tanto em comum...
Mas aí já estás no Norte.
... Não, se tivesse que escolher uma cidade escolhia Alepo [Síria]. É
muito bonita, de uma pedra amarelada, tem muito boa construção, muito
varandim de madeira, e a pedra e a madeira combinam bem. E tem um
"souk" denso, fantástico, talvez o mais denso que conheci. É muito
mais bonito e interessante que Damasco.
Pensei que ias escolher Beirute.
Tenho muita ambivalência em relação a Beirute. É, de longe, onde se
respira mais liberdade.
E rapidez de reconstituição.
Destruição e reconstituição são absolutamente vertiginosas. É uma
cidade agradável para se estar, mas não diria que é bonita. Tem um
enorme excesso de construção e é dura.
No livro em que visita algum deste Sul, "Mediterrâneo, Ambiente e
Tradição", Orlando Ribeiro defende que o Mediterrâneo é um todo, uma
unidade para além das diferenças religiosas, com um carácter de
permanência que o progresso ofusca sem destruir. Disse-o em fins de
50, começos de 60. Ainda é possível dizer isto?
Que há uma unidade, creio que há - a do tempo, mais que a dos lugares.
Ou seja, não é a unidade da paisagem, é a da persistência do tempo. A
ideia de que a vida mudou, mas muito pouco ao longo de muitos séculos.
A ideia de que as mudanças passaram pelas comunidades, mas que elas as
absorveram para mudar o menos possível. Como o Mediterrâneo tem um
excesso de História, aprendeu a lidar com ela dessa forma. Isso
mantém-se.
O que acho é que a aceleração dos últimos 150 anos, em particular dos
últimos 50, é de tal modo poderosa que curto-circuita todos os
adquiridos anteriores. Mas não rebentou com eles. Há uma tentativa
desesperada de resistir à instantaneidade como forma de vida. Acho que
é isso que explica os fundamentalismos, essa dificuldade de entender a
fusão dos tempos. É a resistência do clã que se adapta ao sistema
político moderno, transformando as lideranças de clãs em lideranças
modernas dos partidos. É o modo como a penetração da cultura americana
é espantosamente compatível com o arcaísmo da vida na família
alargada. Poucos países conseguem concentrar tão bem essas
contradições como o Líbano. É uma espécie de grande concentrado do
Império Otomano, da globalização e da resistência à globalização, ao
mesmo tempo.
As religiões são chapéus de chuva, atrás dos quais se abrigam as
velhas realidades clânicas.
A imigração, que transformou o Mediterrâneo num espaço de morte, com
centenas a tentarem atravessá-lo, é uma mudança decisiva no equilíbrio
de que falava Orlando Ribeiro?
O livro acaba justamente com a imigração. Adopto a ideia de que neste
mar sempre se perseguiram os paraísos na terra, e que a viagem é uma
busca do paraíso terreal. Para concluir com a ideia - do Cláudio
Torres [co-autor do documentário] - de que o paraíso terreal mora
dentro de cada um, tem a ver com a força que leva as pessoas a
partirem. Sempre se partiu ou porque se tinha que fugir ou porque não
se tinha como ficar. Raramente partir é uma escolha. É uma escolha só
para quem pode.
Género Bruce Chatwin.
Exacto. O Chatwin sustenta que o viajante é um nómada e eu discuto isso.
No caso do Chatwin, é um luxo.
Para mim, é um luxo. É uma dádiva que tenho, uma possibilidade.
Como o rei Faisal diz a Lawrence da Arábia: só os ocidentais escolhem
o deserto.
Exactamente. O que se passa no Mediterrâneo tem que ver com uma
tendência humana muito antiga, mas com decisões de policiamento muito
modernas. A decisão de fechar o Mediterrâneo é da Europa. E aquilo que
é horroroso nas políticas de imigração - a expulsão e o repatriamento
- deixa de ser função de um estado para passar a ser função de
Bruxelas. A Europa está nesta posição extraordinária de ter uma
política de expulsão sem ter uma política de entrada nem de
integração. Mais, consome 50 por cento do orçamento em expulsões e
repatriamentos.
Isto é absurdo por razões humanas e porque dá alimento a posições
sobre a imigração como as mais recentes do parlamento italiano, que
criminalizam quem ajude um emigrante sem papéis, ou seja, criminalizam
a humanidade. São pura e simplesmente protofascistas, não têm outro
paralelo que não nos anos 30 na Alemanha. E Bruxelas foi incapaz de
contestar aquele tipo de legislação porque se inclui no quadro legal
da directiva de retorno.
Uma das perguntas para a qual não tens resposta definitiva: por que é
que se enchem as mesquitas a sul e se esvaziam as igrejas a norte?
Ensaio uma resposta, acho que é pelo menos parte da resposta. A
dificuldade de fazer em 50 anos o caminho que as sociedades do Norte
puderam fazer em 150 ou 200, ou seja, a aceleração dos tempos no
presente. Onde tive a melhor ideia disto foi em Sana, no Iémen. O
camelo ainda é meio de transporte e o último todo-o-terreno também. A
sociedade é a do petróleo e ao mesmo tempo tão arcaica, conservadora e
fechada como os sauditas das areias. Foi aí que tive a noção de como é
difícil a comunidades tribais lidarem com a avalancha de modernidade e
ao mesmo tempo com o facto de os modernistas que os dirigiram serem
ditadores.
Ficaram sem saída. A certa altura, a mesquita transformou-se num
reduto de identidade e de liberdade. Esta avalancha do moderno é de
tal modo violenta sobre uma sociedade habituada a andar devagar que
fica difícil lidar com a vertigem.
Eu não procuraria convencer o meu avô, se ele fosse vivo, de coisas
que pudesse pensar. Estou convencido de que aquilo que lhe pudesse
dizer não era aquilo que ele ouviria. Se isto é assim entre gerações
num país ocidentalizado, como não há-de ser nas terras em que a
intromissão do Ocidente é tardia, e onde as boas ideias chegam com o
colonialismo? Digamos que o europeu leva duas malas. A mala dos
direitos individuais e da revolução e a mala do colonialismo e
imperialismo económico.
Para voltar aos ditadores. Uma explicação para o reforço das mesquitas
- depois aproveitado pelo islamismo político - é a falência
pós-colonialista....
Do nacionalismo árabe, claramente.
... dos serviços públicos e de todas as redes que é suposto o Estado
construir. Esta é a história do crescimento do Hamas, da Irmandade
Muçulmana: redes sociais ligadas às mesquitas que fazem aquilo que o
Estado não faz.
No fundo, é o princípio das antigas fundações em que se alicerçou a
sociedade otomana, e até a sociedade árabe inicial. A ideia da
fundação ligada à dízima. O império nunca foi centralizado, os estados
são um produto recente. Os sistemas de dominação naquele mundo foram
sempre muito fractais, em mosaico, intercomunitários. E este princípio
de autogoverno foi seguido mesmo pelo mais perene dos impérios, o
romano. Só é brutal se há dissensões no topo, ou uma sedição que corre
o risco de contaminar o vizinho. Fora disso, procura conviver com os
poderes locais, É essa a história do Mediterrâneo. Os poderes locais
sempre foram fortíssimos.
Grande náufraga do falhanço nacionalista é a esquerda laica. No
Egipto, na Palestina - o que é que aconteceu?
A esquerda é vítima quer da força da religião como resistência
identitária quer das ditaduras. Às vezes, a diferença entre estar no
Governo ou na prisão é a diferença de uma atitude ou do modo como
acordou naquele dia o líder nacionalista. Não há meio termo. Com
excepção do Líbano e da Palestina.
No Líbano, o [historiador de esquerda] Samir Kassir acabou morto em 2005.
Aí as tradições são outras, é muito mais complicado. Há um bom
exemplo, o caso da Síria. Tem dois ou três partidos comunistas. Dois
estão no Governo, o outro está na prisão. Mas podia ter sido ao
contrário.
A esquerda foi cúmplice da modernidade dos regimes nacionalistas, mas
essa modernidade foi imposta à bruta. Nunca se procurou trabalhar com
o tempo. Todos aqueles líderes, de Ataturk [Turquia] ao xá da Pérsia
ao Nasser [Egipto], tinham os olhos postos no Ocidente e nas ideias
ocidentais que transformavam a religião num produto do passado e da
ignorância. Tentaram afrontar a religião ou nacionalizá-la.
"Périplo" é o livro de um não-crente. Mas compreendes quem procura
negociar dentro dos limites da tradição religiosa, em vez de quebrar.
Isso tem a ver com o modo como olho para as pessoas hoje, que não é
como olhava. E o modo como hoje respeito os tempos longos da história.
Isto parece estranho vindo da esquerda radical, mas tem a ver com uma
conclusão política a que cheguei também em Portugal. Uma pessoa de
esquerda nunca deve deixar de lutar por transformações, mas deve
resistir à tentação de as impor à bruta. E a esquerda do século XX
nunca soube resistir à pior das tentações do poder, que é o poder. Ou
seja, a ideia de que, em nome da razão, a pode impor de qualquer
forma.
Para mim, os fins não justificam os meios. E como entendo que a
política deve ser feita com a maioria, deve ser a possibilidade de a
maioria se apropriar da política, isto é incompatível com impor
valores à bruta. A batalha pela hegemonia ao nível dos valores implica
trabalhar com o factor tempo.
Se tivesses que apontar os falhanços da esquerda no Sul do
Mediterrâneo, quais seriam?
Em nome da modernidade, a aceitação da ditadura. O que deixou o campo
aberto às redes sociais do islamismo político. Digamos que os pobres
passaram a reconhecer-se no islamismo político.
E não na esquerda. Um tremendo falhanço.
Brutal. Há um outro dado, que se percebe bem na Palestina. Arafat é o
líder nacionalista que tem que fazer compromissos com todos os chefes
que vieram com ele de Tunes, mas ainda é o pai de uma nação sem
estado. Por baixo dele, e com a cobertura dele, todos os sistemas de
poder na sociedade se reconstituíram em ligação íntima com os
israelitas, porque já não é possível fazer comércio na Palestina sem
ser com empresas israelitas. Então, são as próprias circunstâncias de
um território ocupado, com segmentos de autogoverno, digamos, que
colocam as novas lideranças palestinianas, que vieram do exílio, na
estrita dependência do inimigo. Ao fim de alguns anos, isto não só
corrompe completamente como acaba por deixar a maioria do povo
entregue às correntes menos comprometidas com os laços económicos com
Israel.
Seres ateu e de esquerda é uma liberdade ou uma incapacidade neste
mundo? Reconhecendo que a esquerda não soube dialogar com a religião,
parece-te inevitável que esse diálogo aconteça, e que tudo terá que
ser discutido dentro dos limites dessa religião?
Não só penso que o diálogo é indispensável, como o diálogo com o
islamismo político é absolutamente indispensável. A ideia de que não
se pode ou deve dialogar com o islamismo político é um enorme erro. É
o equivalente a dizer que não se deve dialogar com aqueles povos.
Porque, se houvesse eleições realmente democráticas, os que mandam não
se aguentavam nem seis meses.
O islamismo político ganharia.
Ganharia. Depois havia de perder, mas abria-se o jogo. O partido que
actualmente governa a Turquia não é outra coisa que não uma variante
da Irmandade Muçulmana.
Então, neste universo muito mais próximo do islamismo político do que
há décadas - e já vimos como a esquerda também foi responsável por
isso -, o que é que a esquerda tem a fazer?
A esquerda árabe é tributária da formação marxista europeia e teve
sempre dificuldade em compreender o fenómeno religioso. O que faço no
livro é um exercício que hoje muita gente na esquerda faz: tentar
compreender o fenómeno religioso depois de a fractura entre religião e
ciência ter deixado de ser o que era. Hoje a ciência não tem que se
opor à fé para resolver problemas de ordem filosófica que decorrem
estritamente da crença. Não há resposta científica para algo que
decorre da fé. O facto de eu não ter religião, e de pensar que a
religião é um produto dos homens, permite-me ter a distância que de
algum modo um jornalista pode ter. Não parto para a análise da
religião com um "parti pris" de ateu. Parto para a análise da religião
como fenómeno humano, que é o que me interessa.
As religiões são profundamente desconhecedoras das suas vizinhas. Os
sunitas desconhecem tanto os xiitas quanto os católicos desconhecem os
protestantes. Em Alepo, em 2007, num encontro ecuménico, defendi isto:
pelo menos podemos concordar que o homem inventa Deus à sua
semelhança. E no fim eles declararam-me crente: você acredita no
homem. E eu disse que sim. Tive que dizer. Mas, de facto, hoje não
tenho uma crença particular no homem. Transitei do cristianismo para o
marxismo bastando-me acreditar no homem. Substituí uma crença por
outra. E hoje estou convencido de que o homem é capaz do pior e do
melhor, e que não há nenhum destino escrito. Não há uma bondade inata
que, no fim, triunfe sobre o mal. É possível, aliás, que o mal
triunfe. Tenho a certeza absoluta que se quiser algum bem tenho que
lutar muito, e que vale a pena fazê-lo. Mas hoje a minha relação com a
crença na humanidade resume-se a quase uma atitude egoísta: poder
chegar ao fim da vida e achar que, apesar de tudo, fui útil, não
sacaneei o próximo, não fiz coisas de que me tenha mesmo que
arrepender. Que a minha vida teve algum sentido - e só entendo a minha
vida com outros.
Se fosses um homem de esquerda no Egipto, o que farias?
No Egipto, não sei bem. Não há nenhum partido em que me pudesse
reconhecer. Seria provavelmente um activista social ou cultural, um
jornalista procurando ser sério, um escritor procurando ganhar espaço
de liberdade. A minha política seria a minha forma de ser útil nesse
mundo.
Ou seja, não é possível fazer política de esquerda no Sul do Mediterrâneo?
É possível. No Egipto, é que não há, neste momento, forças visíveis.
No Líbano, é um pouco diferente. Ou na Palestina, onde eu estaria com
a esquerda da Terceira Via, nem Hamas nem Fatah, que não se conseguem
entender entre si. Apesar de tudo, na Palestina há uma possibilidade
de a esquerda laica se afirmar se não estiver dividida.
Não me esqueço de um momento em Gaza, num encontro com vários
deputados, em que eu e a [eurodeputada] Luisa Morgantini estamos a
discutir com eles: "Porque é que continuam a atirar 'rockets'? Isso
não presta para nada, não tem nenhum efeito militar, só une a
sociedade israelita contra vocês. Que falta de sentido nisso!". E um
homem da FDLP [partido de esquerda] levanta-se e diz: "São capazes de
ter razão, mas digam-me lá o que faz um gato numa jaula? Pelo menos
tem que mostrar as garras. Isto são as nossas garras. A gente sabe que
não serve para nada, mas temos que mostrar qualquer coisa".
Estamos vivos.
Estamos vivos. Eu consigo compreender isto. A questão deles não é a
eficácia. A eficácia deles é demonstrarem que estão vivos.
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