Vamos levantar-nos?
Vamos virar-nos? Vamos almoçar? Vamos vestir-nos? É assim que as
nossas cuidadoras e cuidadores se dirigem normalmente a nós
dependentes.
Costumo, em tom de
brincadeira responder que quem se vai levantar, vestir, ou virar sou
eu e não eles. Alguns, também a brincar, respondem que sem o seu
apoio não realizo nenhuma dessas atividades, que a coisa é feita em
conjunto, daí o vamos a isto e aquilo.
Têm razão. Sem
eles não seríamos nada. Eles fazem parte de nós. Sem o seu apoio
não funcionamos. É assustador pensar e sentir que não somos donos
das nossas vidas. Que dependemos de alguém para praticamente tudo. E
quando estou a referir tudo, sei do que falo. Refiro-me às tarefas
mais básicas como por exemplo beber água, abrir uma porta, virar-me
na cama, proteger-me do frio…
E não damos pouco
trabalho. Veja o meu exemplo de me levantarem da cama:
-Desviar a roupa da
cama para trás;
-Tirar-me a almofada
de posicionamento do meio das pernas e a calcanheira;
-Virar-me de costas
e posicionar-me no centro do colchão;
-Realizar-me a
higiene íntima e desinfetar o orifício da suprapúbica e o
cistocateter;
-Despejar o saco
coletor de urina;
-Acomodar o saco
coletor de urina no corpo;
-Vestir-me peça a
peça de roupa;
-Encostar a cadeira
de rodas ao lado da cama;
-Transferir-me para
a cadeira;
-Calçar-me;
-Encaixar as peças
de segurança na cadeira de rodas;
-Colocar água nas
garrafas;
E na maioria das
vezes executo algumas tarefas, como por exemplo vestir algumas peças
no tronco, lavar o rosto, escovar os dentes, pentear-me, perfumar-me,
desfazer a barba com máquina de barbear…
Leram bem. Muita
coisa. E só me estou a referir a uma das tarefas diárias. Tanto
trabalho a cargo de quem escolheu ou não nos apoiar. Dia de banho e
treino intestinal (geralmente dia sim, dia não) o trabalho é a
dobrar. E não são tarefas fáceis. Damos muito trabalhinho e eu sei
disso. Dependemos deles e pedimos-lhes muita coisa. Mas não tudo o
que precisamos.
Depender dos outros.
Até hoje foi um problema que não consegui resolver dentro de mim. É
algo que me incomoda muito. Faz-me mal sentir que dependo de alguém
para tudo. O pedir isto, depois pedir aquilo, e de seguida outra
coisa. E como escrevi acima, não pedimos tudo que precisamos.
Exemplo: quando nos
deitamos e caso estejamos com frio, pedimos para nos colocarem roupa
que achamos ser suficiente para nos aquecer, mas horas depois acordo
cheio de calor. Claro que não vou acordar alguém para me retirar
roupa da cama! Sou incapaz de o fazer.
Quem nos rodeia
costuma dizer com frequência. Se precisares de mim é só avisar.
Mas claro que no geral evito ocupar as pessoas. Mas se verifico que a
oferta é de coração e genuína, não deixo de pedir apoio. Nesse
caso faço-o não porque gosto, mas porque vejo nos olhos da pessoa
que está a fazer algo com prazer. É a única circunstância que
consigo pedir algo sem grandes rodeios.
Seja num lar, ou nas
nossas casas, cuidar de nós não é tarefa fácil. Admiro muito quem
o faz de coração, e de uma maneira descomprometida. Eu penso que
não seria capaz de ser assistente de alguém nas minhas
circunstâncias.
Urge iniciar a
filosofia de Vida Independente. Só assim teremos alguém que nos
auxilie de corpo e alma, e não por favor. Alguém que possamos
sentir como sendo nosso apêndice, nossas pernas e braços, e pago de
acordo com as suas funções, e munido de Produtos de Apoio, que lhes
permita auxiliar-nos de maneira adequada, e sem pôr em risco a sua
saúde.
Foi publicado em
outubro último, o Decreto Lei nº 129/2017 que cria o Modelo de
Apoio à Vida Independente no nosso país. Consiste na
disponibilização de assistentes pessoais por parte do Estado, a
pessoas dependentes, e definiu o seu vencimento mensal em 900€ por
8 horas diárias de trabalho.
Mas como a maioria
das respostas sociais para pessoas com deficiência, também este
apoio continua a ser uma intenção. De outubro para cá pouco ou
nada aconteceu. Continuamos a depender do favor de quem nos cuida em
lares, nossas casas, etc. Só com um assistente pessoal, remunerado
conforme a sua categoria, poderei olhar para quem me auxilia, como
alguém que está ali por opção e por gosto e não por obrigação.
Enquanto o Estado
continuar a optar pela nossa institucionalização, e a obrigar as
nossas famílias a cuidar de nós, não nos deixaremos de sentir um
peso e uma cruz nas suas vidas.
Ass: Eduardo Jorge (tetraplegicos@gmail.com)
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