Se
eu fosse paneleiro — na verdade, ninguém pode garantir que eu não
seja, não tenha sido ou não venha a ser — e ocupasse um cargo
político nunca aceitaria o protocolo da confissão, dizer o que se é
àqueles que o não são. Não para manter o “segredo”, mas para
não me submeter à regra da autentificação pelo discurso da
verdade, tão aplaudido pelos que acham que a sua verdade é
diariamente autentificada pelas evidências.
Se eu fosse paneleiro —
para usar uma forma especulativa que pode referir-se ou não a um
estado de facto — também amaldiçoaria o dia em que, por palavras
ou actos, me deixasse sujeitar pelo discurso odioso dos que
descobriram que o seu alto teor de aceitação da homossexualidade é
uma marca de distinção — de modernidade, de progressismo, de
“estilo” — e um capital cultural para ser exibido publicamente,
sobretudo quando lhes é oferecido o exemplo do homossexual bonzinho
e ao serviço da homonormatividade, o amigo gay que todos temos.
Se
eu fosse paneleiro — e, dizendo isto, não estarei já a
inscrever-me numa “homossexualidade molecular”? — o que eu não
riria da homofilia editorial do Expresso,
que anunciava a “confissão” do dirigente do CDS como uma notícia
que não devia ser notícia mas que ainda tem de ser notícia. O que
se pode ler nesta fórmula retorcida é que obter de alguém a
afirmação “eu sou gay” merece sempre uma nota editorial, que é
a notícia da notícia, ou a notícia que reflecte sobre si própria
para dizer que aquilo só é notícia para alguns atrasados,
ignorantes e preconceituosos que a vão tratar como tal, apesar de
ela ser feita por quem acha que não devia ali haver notícia alguma.
É notícia porque “o mundo é o que é, o país é o que é, a
sociedade em que estamos inseridos é o que é”, reafirma um
jornalista noutra página do mesmo jornal, também a propósito de
Adolfo Mesquita Nunes.
Se eu fosse paneleiro e pleno de perfídia —
hoje, contraí um apego aos atributos que começam por “p” —
diria gentilmente ao simpático autor desta proposição lógica que
aquilo a que os franceses chamam “bêtise”
(e que eu não vou traduzir por “estupidez” porque seria uma
tradução pouco correcta e indelicada para o visado), pode ser
exemplificado — dizem os tratados sobre tal matéria — pelo uso
abusivo e hiperbólico do princípio da identidade, exibindo-o de
maneira peremptória, como na frase “O mundo é o que é, o país é
o que é”. E o que é um gay hoje, daqueles que fazem os jornais,
as revistas e as televisões olharem para si próprios com orgulho
por estarem tão à frente do país que “é o que é”? É uma
marca, uma sexualidade branca ou um turista do sexo, conforme a um
modelo unissexual.
Se eu fosse paneleiro e político — malditos
“pês”, que afluem como em hora de ponta, salvo seja — ficaria
sempre calado para não ser transformado num estereótipo do
homossexual de Estado, a não ser que aspirasse precisamente a essa
condição. O que o Expresso revelava
este fim de semana como uma verdade de primeira página é afinal uma
mentira: Adolfo Mesquita Nunes não assumiu nada porque também não
há nada a dissimular, não mostrou nada porque já não há nada a
mostrar. O único objectivo que alcançou foi ter deixado que
fizessem dele um cromo do ideal do Kitsch.
Se eu fosse paneleiro — estribilho infame a que vou pôr fim —
teria exultado com o que vi este fim-de-semana: o “orgulho gay”
instalado em jeito de parada no Expresso,
reivindicado no editorial, e gritado como palavra de ordem pela
presidente do CDS.
NOTA:
No título, a palavra “paneleiro” é substituída por três
pontos. Não por motivos de censura ou auto-censura, mas porque seria
um foco de atracção dos clicks. Antes paneleiro que populista.
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