Fez
esta semana três anos que entrei como administrador na RTP, com a
responsabilidade da área dos conteúdos. Agora que estou de saída,
aqui deixo umas notas sobre o trabalho feito.
1. Fomos
a primeira administração da RTP que não foi nomeada por um governo
ou um poder político, mas sim por um Conselho Geral Independente.
Este
é um modelo que defendo desde a primeira hora e que é um ganho
civilizacional no sentido em que reforça a definição da RTP “como
uma estação pública e não como uma estação do Estado”.
Antes
de ser oficialmente nomeado, foi-me exigido que deixasse todos os
cargos de administração que tinha nas minhas empresas, o que,
obviamente, fiz. Ficou também estabelecido que a RTP não teria
qualquer relação comercial, que não faria qualquer negócio, com
qualquer empresa de que eu fosse accionista. O que foi
escrupulosamente cumprido nestes três anos.
Foi-me
perguntado se eu punha a hipótese de vender as minhas empresas. Ao
que eu respondi que sim, desde que tivesse uma boa oferta. O CGI
referiu que seria melhor se o fizesse, mas nunca colocou a hipótese
como uma condição.
2.
Sobre
o Serviço Público de Média há muito o hábito de dizer que
ninguém sabe o que é. Eu discordo. Há muito texto publicado,
muitos artigos sobre o que devia ser o Serviço Público de Média,
como deveria ser a RTP. Eu próprio escrevi muitos textos sobre o
assunto antes de vir para este lugar. Sempre me pareceu que, por mais
voltas que se dê, tudo se pode resumir a uma aposta em três
generalidades: diversidade, qualidade e independência.
No
momento em que iniciámos o mandato, a frase de que me lembrava era a
de Almada Negreiros: “Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar
a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa —
salvar a humanidade.”
No
caso da RTP, só faltava fazer. Fazer mais serviço público. E não
perder tempo.
Primeiro
princípio genérico: a RTP é o conjunto dos seus canais e
plataformas de rádio, televisão e online/multimédia (por oposição
a uma RTP totalmente focada na RTP1, que deixava o resto a ser só o
resto).
Cada
canal deve ter uma identidade e idealmente uma direcção autónoma
com uma lógica de programação própria e distinta dos outros.
Todos
os conteúdos devem ter uma outra existência individual e ficar, de
acordo com os direitos de autor negociados, disponíveis no RTPPlay e
acessíveis por qualquer meio e dispositivo.
Encontradas
as equipas directivas, começou a fazer-se o caminho deste princípio.
Começámos
pela Antena3. Em vez do perfil de “rádio jovem” partiu-se do
conceito de rádio pop, não só da música pop, mas da cultura pop.
E, por diferenciação da pop mais mainstream,
presente nas rádios comerciais, ser “A Alternativa Pop”. Com
menos playlist e
mais programas de autor. Curadorias musicais. E humor, novo humor.
Outra
prioridade foi fazer do site da Antena3 o canal de música que a
televisão sempre quis ter e que hoje só faz sentido ter online e on
demand.
E para esse canal (muitas vezes em parceria com a RTP2 ou a RTP1)
gravar programas sobre bandas, editoras, concertos. Criar património
visual para o futuro. E alargar a outras áreas como as artes
plásticas ou a fotografia.
Depois,
foi a Antena2. Em vez do perfil da rádio da música clássica,
alargar o conceito a rádio não só da música, mas da cultura
erudita e de públicos mais minoritários. E, tal como acontece com a
Antena 3, fazê-la ter mais presença fora da antena. Desde logo
dando mais força ao excelente Prémio Jovens Músicos, ou marcando
presença forte em eventos como Os Dias da Música do CCB, mas
sobretudo lançando o Festival Antena 2, no Teatro da Trindade.
A
Antena1 não teve grande alteração. É uma rádio generalista,
sobretudo uma rádio de palavra, com múltiplos programas e rubricas
de autor. E com uma componente de informação que sempre pensámos
podia ser reforçada, em particular no período da manhã e com maior
abertura para as breaking
news.
Do
lado da televisão, começámos pela RTP Memória. Entregámo-la à
equipa mais jovem da RTP, a equipa do Centro de Inovação, e o
desafio foi simples: a partir do arquivo da RTP e de conteúdos
internacionais que fizeram a história da televisão, elaborar uma
programação de revisitação do passado à luz do presente, misto
de memória, nostalgia e ironia do design geral
do canal aos conteúdos específicos. Cruzando uma lógica evocativa
e sinalizadora das efemérides com celebrações nostálgicas de
estética retro.
Quanto
à RTP 2, o desafio da conciliação das várias missões do canal
(cultura, infantil, desporto amador, sociedade civil, religiões...)
não facilita a definição de uma identidade.
Optou-se
por destacar, no horário nobre, a componente cultural reforçando a
linha de programação de séries estrangeiras dos diferentes países
europeus, com as suas diversas línguas (por oposição ao domínio
anglo-saxónico do cabo); e complementá-la com três linhas de
programação de cinema — ciclos temáticos, cinema português e
Tudo Menos Hollywood (que é auto-explicativo).
Retomou-se
a programação de concertos, óperas, bailado e teatro, ao
fim-de-semana. E a RTP voltou a gravar peças de teatro português.
Mas
uma das decisões estratégicas foi não concentrar “a cultura”
num único canal. A cultura deve ser absolutamente transversal a
todos os canais da RTP.
Quanto
à programação infantil, o que fizemos foi desenvolver a marca
ZigZag, nome dos períodos de programação infantil da RTP2, e criar
a Rádio ZigZag, a app,
os eventos ao vivo e a colecção de livros (a sair na primavera). E
propor a todas as crianças o acto de ziguezaguear pelos vários
suportes à descoberta do universo ZigZag, sempre num ambiente de
total protecção para descanso de todos os pais.
A
RTP1, praça central generalista da RTP, foi onde aconteceu a mudança
mais significativa e arriscada do nosso mandato. E nunca será demais
realçar o corajoso trabalho que o Daniel Deusdado fez, com os mais
baixos orçamentos de sempre da RTP1 para programas.
Primeiro,
regressámos ao padrão europeu acabando com a programação
horizontal e com as telenovelas (ou derivados) no prime
time e
apostando numa programação diversificada onde — combinados com
produtos premium de
grande audiência, como o futebol da Champions ou formatos
internacionais de grande qualidade — se investiu em formatos
originais nacionais e, sobretudo, naquilo que lamentavelmente não
havia em Portugal: uma indústria de produção de séries, o género
actualmente mais popular e mais prestigiado em todo o mundo. O que
foi feito foi um começo. E só a continuidade da aposta na
diversidade das propostas pode garantir o aparecimento de uma nova
geração de argumentistas e produtores especializados e de
qualidade.
Outra
imagem de marca deste mandato são os documentários. Os de cultura
da RTP2, os de “current
affairs”,
da RTP3, e os dos grandes temas programados no horário nobre da
RTP1, com audiências de meio milhão de pessoas como foi o caso do
Planeta Azul ou do extraordinário 2077 – 10 segundos para o
futuro, uma encomenda da RTP em negociação para venda em todo o
mundo (ambição que queremos estender a outros conteúdos, e para
qual estamos a trabalhar num catálogo de conteúdos nacionais com
potencial de divulgação internacional).
A
relação com a produção independente foi uma prioridade,
nomeadamente no sentido de abrir a possibilidade de mais produtores,
e autores de diferentes e variadas características, poderem
apresentar projectos à RTP. Foram abertas Consultas de Conteúdos
anuais para Conteúdos Audiovisuais, Cinema, Online e Rádio, onde
todos podiam apresentar projectos de acordo com os requisitos pedidos
pelas diferentes direcções de conteúdos.
E
para superar os baixos orçamentos disponíveis e reforçar a vontade
de fazer conteúdos para todo o mundo, temos incentivado activamente
as co-produções internacionais.
Mas
também voltámos a produzir internamente os programas do daytime,
nomeadamente o Praça, que regressou ao Centro de Produção do Norte
(que, aliás, voltou a ter grande actividade, tal como o Centro de
Produção de Lisboa).
E
depois houve a reformatação do Festival da Canção, trazendo uma
vida nova a esta marca da RTP com a presença dos melhores músicos
pop portugueses. E este ano alargado a músicos com actividade em
Portugal numa abertura a toda a comunidade africana e brasileira,
entre outras, que são sinal da diversidade da cena musical em
Portugal.
A
extraordinária vitória no Festival da Eurovisão trouxe para a RTP
a organização do maior evento musical do mundo. Não tenho dúvidas:
vai ser um sucesso. Com a particularidade de todo o conceito,
conteúdo e imagem serem criados e definidos por equipas RTP.
Esta
mudança foi elogiada a nível internacional e considerada
um case-study(aliás,
a EBU tem mostrado curiosidade pela mudança que temos vindo a fazer
na RTP e, se não fosse a minha saída da RTP, teria estado esta
semana em Bruxelas, a convite da direcção da EBU para apresentar o
nosso plano estratégico).
Do
lado da Informação, quer da rádio, quer da televisão foi feito um
caminho para tornar a Informação da RTP mais credível,
independente, plural e longe da lógica tablóide que ameaça o
jornalismo. Foi também iniciado um esforço, ainda não suficiente,
para reduzir o espaço do futebol nos noticiários generalistas e do
comentário futebolístico (mas a RTP também se distingue pela
qualidade das suas equipas de desporto — veja-se a excepcional
cobertura do Euro 2016 — e por privilegiar a discussão sobre o
jogo em vez do fanatismo clubístico).
Reforçou-se
a oferta de informação internacional, regional e cultural. E
alargou-se o perfil ideológico dos comentadores, tornando-o menos
partidarizado.
Foi
igualmente relevante a iniciativa estratégica definida desde a
primeira hora de, na rádio e televisão, acabar com os espaços de
comentário político individuais sem contraditório, nomeadamente de
dirigentes partidários de primeira linha ou de deputados do
Parlamento português. Uma separação que nos parece clarificadora e
diferenciadora no actual panorama televisivo. Mas precisamos de mais
reportagem, de mais investigação, de mais activação das
delegações regionais e africanas.
Fundamental
foi a mudança da RTP Informação para a RTP3, criando uma nova
imagem e um novo conceito para o canal de informação da RTP (cada
vez mais devemos falar, mais do que em Informação, em Jornalismo).
Aliás,
a nova imagem gráfica dos vários canais da RTP tem sido fundamental
na percepção da mudança. Muito particularmente os separadores da
RTP 1 encomendados a artistas plásticos e músicos (algo inédito em
canais generalistas a nível mundial).
Podia
falar de muitas coisas mais que fizemos: da nova estratégia para a
RTP Internacional; da RTP África e da sua abertura para as novas
gerações africanas mais cosmopolitas; dos Centros Regionais, e em
particular da renovação das instalações nos Açores; do digital,
das newsletters,
do extraordinário potencial de desenvolvimento do RTPPlay e dos
conteúdos directos para o online; do Ensina; dos Livros RTP; das
parcerias com inúmeras instituições de prestígio...
Falarei
só para fechar daquilo que talvez seja o mais importante: não só a
ida da RTP3 e da RTP Memória para a TDT, mas sobretudo do RTP
Arquivos, a abertura do arquivo da RTP a todos, de forma gratuita,
cumprindo o princípio essencial da não exclusão e da igualdade de
acesso para todos. E da ligação que vai ser feita com as escolas de
todo o país.
Muita
coisa ficou por fazer. No imediato e numa lógica de futuro.
Por
exemplo, a passagem dos conteúdos da RTP Memória para conteúdos
transversais aos vários canais e a transformação da RTP Memória
num canal infantil, a RTP4, com conteúdos portugueses, tão
necessários para colocar na RTP Internacional, para as segundas
gerações de emigrantes (possibilitando igualmente à RTP2 um
reforço da sua componente de canal cultural).
Mas,
para se conseguir mais e melhor, é preciso continuar a exigir um
aumento da contribuição audiovisual (que é escandalosamente baixa
segundo os padrões médios europeus), com a contrapartida de
oferecer conteúdos cada vez mais diferenciadores da oferta privada.
3. Não
estava a contar sair no fim deste primeiro mandato (sobretudo, não
desta maneira e pela razão invocada). Mas saio muito agradecido pela
extraordinária oportunidade que me foi dada pelo Gonçalo Reis, que
me convidou, e pelo CGI, que me nomeou. Foram três anos intensos de
grande trabalho de equipa, também com a minha colega Cristina Tomé.
E
aproveito para agradecer aqui o trabalho de todas as excelentes
equipas da RTP com quem trabalhei.
Também
não quero deixar de referir a inesperada e, para mim, comovente
manifestação de tantas e tantas pessoas, entre as quais tantas que
tanto prezo, que fizeram questão de me apoiar e que me honram mais
que tudo pelo que disseram de mim e do meu trabalho. Não esquecerei.
Tenho
a certeza que o Gonçalo Reis e o Hugo Figueiredo (que conheço e em
quem muito confio) continuarão a estratégia que iniciámos, com as
orientações gerais do CGI.
Saio
muito honrado por ter tido esta oportunidade e por ter podido
contribuir dando o meu melhor a partir deste lugar privilegiado para
esta extraordinária instituição de serviço público, a RTP.
Autor
e administrador cessante da RTP
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