Chico Buarque - A Banda - 1966
Por
Carlos Drummond de Andrade...
O
jeito, no momento, é ver a banda passar, cantando coisas de amor.
Pois de amor andamos todos precisados, em dose tal que nos alegre,
nos reumanize, nos corrija, nos dê paciência e esperança, força,
capacidade de entender, perdoar, ir para a frente. Amor que seja
navio, casa, coisa cintilante, que nos vacine contra o feio, o
errado, o triste, o mau, o absurdo e o mais que estamos vivendo ou
presenciando. A ordem, meus manos e desconhecidos meus, é abrir
a janela, abrir não, escancará-la, é subir ao terraço como fez o
velho que era fraco mas subiu assim mesmo, é correr à rua no rastro
da meninada, e ver e ouvir a banda que passa. Viva a música, viva o
sopro de amor que a música e banda vem trazendo, Chico Buarque de
Hollanda à frente, e que restaura em nós hipotecados palácios em
ruínas, jardins pisoteados, cisternas secas, compensando-nos da
confiança perdida nos homens e suas promessas, da perda dos sonhos
que o desamor puiu e fixou, e que são agora como o paletó roído de
traça, a pele escarificada de onde fugiu a beleza, o pó no ar, na
falta de ar.
A
felicidade geral com que foi recebida essa banda tão simples, tão
brasileira e tão antiga na sua tradição lírica, que um rapaz de
pouco mais de vinte anos botou na rua, alvoroçando novos e velhos,
dá bem a idéia de como andávamos precisando de amor. Pois a banda
não vem entoando marchas militares, dobrados de guerra. Não convida
a matar o inimigo, ela não tem inimigos, nem a festejar com uma
pirâmide de camélias e discursos as conquistas da violência. Esta
banda é de amor, prefere rasgar corações, na receita do sábio
maestro Anacleto Medeiros, fazendo penetrar neles o fogo que arde sem
se ver, o contentamento descontente, a dor que desatina sem doer,
abrindo a ferida que dói e não se sente, como explicou um velho e
imortal especialista português nessas matérias cordiais.
Meu
partido está tomado. Não da ARENA nem do MDB, sou desse partido
congregacional e superior às classificações de emergência, que
encontra na banda o remédio, a angra, o roteiro, a solução. Ele
não obedece a cálculos da conveniência momentânea, não admite
cassações nem acomodações para evitá-las, e principalmente não
é um partido, mas o desejo, a vontade de compreender pelo amor, e de
amar pela compreensão.
Se
uma banda sozinha faz a cidade toda se enfeitar e provoca até o
aparecimento da lua cheia no céu confuso e soturno, crivado de
signos ameaçadores, é porque há uma beleza generosa e solidária
na banda, há uma indicação clara para todos os que têm
responsabilidade de mandar e os que são mandados, os que estão
contando dinheiro e os que não o têm para contar e muito menos para
gastar, os espertos e os zangados, os vingadores e os ressentidos, os
ambiciosos e todos, mas todos os etcéteras que eu poderia alinhar
aqui se dispusesse da página inteira. Coisas de amor são finezas
que se oferecem a qualquer um que saiba cultivá-las, distribuí-las,
começando por querer que elas floresçam. E não se limitam ao
jardinzinho particular de afetos que cobre a área de nossa vida
particular: abrange terreno infinito, nas relações humanas, no país
como entidade social carente de amor, no universo-mundo onde a voz do
Papa soa como uma trompa longínqua, chamando o velho fraco, a
mocinha feia, o homem sério, o faroleiro... todos que viram a banda
passar, e por uns minutos se sentiram melhores. E se o que era doce
acabou, depois que a banda passou, que venha outra banda, Chico, e
que nunca uma banda como essa deixe de musicalizar a alma da gente.
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