18 dezembro 2016

Sobre Literatura

Tiago Bettencourt
Tiago Bettencourt

Este prémio de Dylan tem que ser um incentivo para todos nós. Não só para quem decidir compor uma canção ou cantá-la, mas também para quem a escolhe ao ouvir 

A força de Patti Smith vem de dentro. Goste-se ou não, quem já a leu, sabe que lhe é característica uma doce honestidade que transparece para a sua forma de dizer e de cantar, fruto de uma vida inteira dedicada à arte. Foi desse lugar transparente onde raros artistas sabem estar que Patti homenageou Bob Dylan na cerimónia do Prémio Nobel. Tive que me esforçar para conseguir encontrar a atuação integral, uma vez que para a imprensa teve mais interesse um engano da artista do que o poder do que ali realmente se passou. Sentei-me, pus os auscultadores, e ouvi.

A sua voz maternal ao lado do aço da uma guitarra Dylanesca: "Oh, where have you been, my blue-eyed son?/And where have you been my darling young one?". Existe esta arte de juntar palavras e criar mundos, e existe o dom de as saber dizer, transformando-as como quem acrescenta novas possibilidades para os mundos já escritos e descritos. De voz grossa e imperfeita "I've stumbled on the side of twelve misty mountains/I've walked and I've crawled on six crooked highways" e a viagem começa, tão atual como sermos humanos pelos caminhos tortuosos do nosso tempo. Aos poucos todos os que lá estavam perceberam, e eu também, que as palavras que Dylan canta em tom de desafio, Patti cantou em tom de agradecimento. Ao mesmo tempo que todas as imagens de Dylan ganhavam as cores da voz, da expressão do corpo de Patti Smith, existia em cada uma delas o abraço, o sorriso, e um obrigado pela divina possibilidade de olhar para o mundo através da poesia.

Eu não prestei grande atenção a toda esta polémica sobre o que é ou o que não é literatura. O meu grande encontro com a poesia foi também através do fado e por isso essa questão sempre foi óbvia para mim. Através do fado aprendi a dizer as palavras, a encaixá-las, a moldá-las e também a destruí-las nos sons. Aprendi com a Amália Rodrigues, Alfredo Marceneiro, Camané, Adriano Correia de Oliveira e José Afonso. Foi na música de artistas como Dylan, Cohen, Tom Waits, Sérgio Godinho, Jorge Palma, Rui Veloso, e muitos mais, que aprendi as possibilidades do poema aliado à canção. Lembro-me que decidi fazer canções em que o poema existisse independente da música.

A ideia do poema sobreviver sozinho, não para tirar valor à música, mas para a música ser o filtro que serve a intenção do poema. A música foi a porta para eu me aproximar mais da poesia e me emaranhar mais profundamente na literatura, para me aprofundar, para me tornar mais sensível aos movimentos e cores à minha volta.

Para mim, este Nobel de Dylan vem relembrar o mundo desta grande descoberta que foi a Canção. Espero que nos relembre da importância de uma boa letra, de um bom poema. Espero que os artistas mais cegos e cada vez mais vazios do novo milénio ganhem ambição. Espero que percebam o tesouro que têm nas mãos, a ponte, a oportunidade. Espero que os fadistas se lembrem que têm que ser os principais representantes da melhor poesia cantada em Português, mantendo a fasquia alta em vez de a baixar para vender mais discos. Que deixem de pôr um fado com um poema de David Mourão Ferreira, ou Vasco Graça Moura ou Samuel Úria ao lado de uma qualquer canção ultrapop com um poema medíocre mas com um refrão orelhudo, mostrando total falta de critério, direção e responsabilidade. Sim, não é fácil escrever bem e chegar a toda a gente, mas é possível e Dylan é a prova. E não é bem mais valiosa a ideia desta entrega pelo melhor que podemos ser na arte? Sejamos ambiciosos então, porque este prémio de Dylan tem que ser um incentivo para todos nós. Não só para quem decidir compor uma canção ou cantá-la, mas também para quem a escolhe ao ouvir.

E de voz forte e calejada, Patti Smith sorrindo da sua própria entrega espelhada no poema do seu amigo: "And I'll stand on the ocean until I start sinkin'/But I'll know my song well before I start singing."

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