A força de
Patti Smith vem de dentro. Goste-se ou não, quem já a leu, sabe que lhe é
característica uma doce honestidade que transparece para a sua forma de
dizer e de cantar, fruto de uma vida inteira dedicada à arte. Foi desse
lugar transparente onde raros artistas sabem estar que Patti homenageou
Bob Dylan na cerimónia do Prémio Nobel. Tive que me esforçar para
conseguir encontrar a atuação integral, uma vez que para a imprensa teve
mais interesse um engano da artista do que o poder do que ali realmente
se passou. Sentei-me, pus os auscultadores, e ouvi.
A sua voz
maternal ao lado do aço da uma guitarra Dylanesca: "Oh, where have you
been, my blue-eyed son?/And where have you been my darling young one?".
Existe esta arte de juntar palavras e criar mundos, e existe o dom de as
saber dizer, transformando-as como quem acrescenta novas possibilidades
para os mundos já escritos e descritos. De voz grossa e imperfeita
"I've stumbled on the side of twelve misty mountains/I've walked and
I've crawled on six crooked highways" e a viagem começa, tão atual como
sermos humanos pelos caminhos tortuosos do nosso tempo. Aos poucos todos
os que lá estavam perceberam, e eu também, que as palavras que Dylan
canta em tom de desafio, Patti cantou em tom de agradecimento. Ao mesmo
tempo que todas as imagens de Dylan ganhavam as cores da voz, da
expressão do corpo de Patti Smith, existia em cada uma delas o abraço, o
sorriso, e um obrigado pela divina possibilidade de olhar para o mundo
através da poesia.
Eu não prestei grande atenção a toda esta
polémica sobre o que é ou o que não é literatura. O meu grande encontro
com a poesia foi também através do fado e por isso essa questão sempre
foi óbvia para mim. Através do fado aprendi a dizer as palavras, a
encaixá-las, a moldá-las e também a destruí-las nos sons. Aprendi com a
Amália Rodrigues, Alfredo Marceneiro, Camané, Adriano Correia de
Oliveira e José Afonso. Foi na música de artistas como Dylan, Cohen, Tom
Waits, Sérgio Godinho, Jorge Palma, Rui Veloso, e muitos mais, que
aprendi as possibilidades do poema aliado à canção. Lembro-me que decidi
fazer canções em que o poema existisse independente da música.
A
ideia do poema sobreviver sozinho, não para tirar valor à música, mas
para a música ser o filtro que serve a intenção do poema. A música foi a
porta para eu me aproximar mais da poesia e me emaranhar mais
profundamente na literatura, para me aprofundar, para me tornar mais
sensível aos movimentos e cores à minha volta.
Para mim, este
Nobel de Dylan vem relembrar o mundo desta grande descoberta que foi a
Canção. Espero que nos relembre da importância de uma boa letra, de um
bom poema. Espero que os artistas mais cegos e cada vez mais vazios do
novo milénio ganhem ambição. Espero que percebam o tesouro que têm nas
mãos, a ponte, a oportunidade. Espero que os fadistas se lembrem que têm
que ser os principais representantes da melhor poesia cantada em
Português, mantendo a fasquia alta em vez de a baixar para vender mais
discos. Que deixem de pôr um fado com um poema de David Mourão Ferreira,
ou Vasco Graça Moura ou Samuel Úria ao lado de uma qualquer canção
ultrapop com um poema medíocre mas com um refrão orelhudo, mostrando
total falta de critério, direção e responsabilidade. Sim, não é fácil
escrever bem e chegar a toda a gente, mas é possível e Dylan é a prova. E
não é bem mais valiosa a ideia desta entrega pelo melhor que podemos
ser na arte? Sejamos ambiciosos então, porque este prémio de Dylan tem
que ser um incentivo para todos nós. Não só para quem decidir compor uma
canção ou cantá-la, mas também para quem a escolhe ao ouvir.
E
de voz forte e calejada, Patti Smith sorrindo da sua própria entrega
espelhada no poema do seu amigo: "And I'll stand on the ocean until I
start sinkin'/But I'll know my song well before I start singing."
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